PRERROGATIVA DE AUTONOMIA: Projeto “anticrime” do governo: legítima defesa ou lei do abate?

Por Luiz Flávio Gomes/CONJUR

A lei da legítima defesa é tão antiga quanto andar para frente. Nosso Código Penal a autoriza no art. 25. Sempre foi assim. Todos podemos agir em legítima defesa “para repelir injusta agressão humana atual ou iminente”, de quem quer que seja. Quem coloca em risco nossa vida pode ser morto antes.

Se alguém quer me matar, posso me defender prontamente (não depois que o risco já cessou) para preservar um direito próprio ou de outra pessoa. Isso é legítimo e não tem nada a ver com a “lei do abate”, que permitiria matar indiscriminadamente (como se estivéssemos numa guerra declarada, que tem por base o “estado de exceção” – ver G. Agamben).

Sobre tudo isso nunca houve nenhum tipo de discussão. Não há dúvida que também os policiais e agentes de segurança podem matar em legítima defesa, “usando moderadamente dos meios necessários”. Cuidado: para matar um mosquito não se usa um canhão (a lei não quer a desproporcionalidade, não quer abusos, não quer excessos, embora eles ocorram muitas vezes).

Se tudo que nos protege está na lei e se os juízes vêm aplicando essa lei, para que mudar? Mudar aquilo que vem sendo observado rigorosamente pelos juízes e tribunais gera muita confusão. O preço da mudança não compensa o desgaste da polêmica ou dos riscos para o Estado de Direito.

Para que mais confusão, num país já repleto de discórdias e cizânias?

O parágrafo único que Moro quer acrescentar ao art. 25 diz: “Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”

Quem discute que o policial ou agente de segurança pode agir em legítima defesa?

Se a nova norma diz “observados os requisitos do “caput”, o acréscimo nada mais é que uma explicitação supérflua do que já está no art. 25. Se tudo já está na lei, o melhor é não mexer no assunto, porque vai saber como vão interpretar o “acréscimo”! Estaria ele permitindo a “lei do abate”? Estaria permitindo o “atire primeiro e pense depois”?

Num país polarizado e atualmente odioso como está o Brasil, já há quem queira isso. Se o que está sendo proposto é dispensável, porque os policiais já estão protegidos adequadamente pelo art. 25, a melhor técnica legislativa não recomenda a norma nova.

Normas supérfluas ou desnecessárias só geram controvérsias, que atrapalham o que realmente importa, que é tratar com o devido rigor, dentro do Estado de Direito, o crime violento, o crime organizado e a corrupção.

Excesso escusável na legítima defesa
A proposta Moro diz o seguinte: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

O dispositivo foi pensado para regular situações como aquela do caso Ana Hickmann (seu cunhado disparou e matou a pessoa armada que se aproximou dela agressivamente; depois do primeiro disparo, continuou atirando por escusável medo ou surpresa). Houve excesso, mas escusável. Ele foi absolvido.

Vários Códigos Penais civilizados descrevem praticamente a mesma coisa. O § 33 do Código Penal alemão diz: “perturbação, medo ou susto”. O art. 33 do Código Penal português fala em “perturbação, medo ou susto, não censuráveis” (ver Luís Greco, Jota).

O importante é distinguir os dois momentos do fato: no primeiro momento há legítima defesa; no segundo vem o excesso. Mas esse excesso pode decorrer de perturbação, medo, susto ou surpresa escusável. Quando escusável não merece nenhuma pena. Se não totalmente escusável, o juiz reduz a pena até metade. Nada disso é anormal no primeiro mundo. Veja os códigos penais europeus citados.

Até mesmo nosso Código Penal militar já conta com dispositivo semelhante. Quem age em legítima defesa está emocionalmente alterado. Isso é da natureza humana. Em casos excepcionais justifica-se eventual excesso. Quando escusável não pode haver sanção.

Resistência seguida de morte ou “lei do abate invertido”
Outra proposta contida na reforma Moro merece nossa atenção. Trata-se do § 2º do art. 329: “Se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro: pena – reclusão, de seis a trinta anos, e multa”.

Essa proposta, da maneira como foi redigida, é a “lei do abate invertido”. Ela estimula matar policiais dolosamente assim como outros agentes públicos. Vamos ver.

Todas as vezes que nosso Código usa a expressão “se resulta morte”, isso significa crime preterdoloso, ou seja, há dolo (intenção) no crime anterior (resistência) e culpa no crime posterior (a morte). Por exemplo: lesão corporal seguida de morte. O sujeito quer apenas lesar, machucar, mas no final acaba resultando a morte. Isso é crime preterdoloso.

A pena do crime preterdoloso não pode nunca ser maior que a do crime somente (totalmente) doloso (intencional). A pena prevista para a resistência seguida de morte é de seis a trinta anos de reclusão. A do homicídio é de seis a vinte anos.

Se quem resiste tem pena até trinta anos se não quer matar o policial, por exemplo, e se tem pena até vinte anos quando quer intencionalmente matar o policial, qual é a alternativa melhor para o resistente?

Ele sempre vai dizer que queria efetivamente matar o policial, porque isso lhe gerará pena menor. Se não queria matar, mas o policial acabou morrendo, a pena será maior.

O novo dispositivo, em razão da desproporcionalidade da pena, estimula o “abate invertido”, ou seja, o abate doloso de policiais. Matá-lo intencionalmente é mais favorável ao réu. A lei estaria incentivando o assassinato doloso de policiais? Já são mortos 367 por ano (um por dia). É isso que queremos? Eu não!

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