Os macabros brinquedos da Alemanha nazista

Em livro, historiador aborda brinquedos ‘politizados’ da época, como jogos em que objetivo final no tabuleiro é a ‘destruição da democracia’ ou a ‘expulsão da população judia’.
Gabriel Bonis – De Berlim para a BBC News Brasil
No tabuleiro está uma pequena cidade alemã. Há um mercado e algumas lojas de propriedade de judeus. Os jogadores assumem o papel de policiais, navegando pelas vias. Caso os dados rolem da “forma correta”, é possível invadir uma dessas propriedades, confiscar bens, prender judeus e ganhar um chapéu com uma careta. O objetivo é expulsar a população judia e enviá-la a um Sammellager(campo de coleta), de onde seriam deportados à Palestina. Quem “coletar” seis judeus primeiro, vence.

Durante a ditadura nazista (1933-1945), o macabro jogo Juden raus! (Fora judeus!) foi apenas um dos muitos brinquedos racistas comercializados na Alemanha sob o rótulo de “diversão para a família”, ajudando a propagar a ideologia fascista do regime – incluindo crimes em massa.

O 'fantoche judeu' era utilizada em apresentações de propaganda para organizações partidárias nazistas
O ‘fantoche judeu’ era utilizada em apresentações de propaganda para organizações partidárias nazistas

Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

Embora não existam fontes irrefutáveis, há quem estime que Juden raus! teria vendido mais de 1 milhão de unidades. Hoje, a Wiener Library, em Londres, que possui um dos mais extensos arquivos para estudo do Holcoausto no mundo, possui duas raras cópias do jogo. “Quem o comprou provavelmente o destruiu até o final da Segunda Guerra Mundial, mas é um indicativo de quão profunda a ideologia antissemita estava enraizada na sociedade alemã”, afirma à BBC News Brasil André Postert, do Instituto Hannah Arendt, em Dresden.

O historiador estudou os brinquedos vendidos na Alemanha nazista no livro Kinderspiel, Glücksspiel, Kriegsspiel, Große Geschichte in kleinen Dingen 1900-1945, (Jogo infantil, jogo de sorte, jogo de guerra, a Grande História em pequenas Coisas 1900-1945, em tradução livre) lançado no fim do ano passado. “Havia muitos jogos com símbolos nazistas para crianças e adultos. Em um deles, suásticas eram movidas de um campo a outro em um tabuleiro. Cada campo representava um momento importante na história do partido nazista. Quando se chega ao fim, em um campo representando o ano de 1934, o jogador havia destruído com sucesso a democracia alemã”, relata.

Brinquedos com esse perfil, diz o historiador, eram anunciados como educativos. Isso ocorria porque as crianças deveriam ser introduzidas ao Estado, suas instituições e ao partido nazista desde cedo. Logo, era comum que brincassem com bonecos/as vestidos em uniformes do regime ou da Juventude Hitlerista. Até mesmo a famosa empresa Käthe Kruse fabricou esses itens.

No jogo de tabuleiro Sakampf, de cunho antissemita, o objetivo era destruir a democracia alemã
No jogo de tabuleiro Sakampf, de cunho antissemita, o objetivo era destruir a democracia alemã

Foto: Courtesia do The Wolfsonian–FIU, Miami Beach FL / BBC News Brasil

“Após 1933, surgiu um grande número de brinquedos nazistas: cartas com rostos dos principais políticos do regime (Hitler, Goebbels, Göring, etc), soldados, tanques e representações de Hitler e sua comitiva. Um dos mais vendidos era uma Mercedes preta com Hitler e seu motorista. Podia-se comprar miniaturas de casas do Partido Nazista ou a famosa vila de Hitler, o Berghof”, conta Postert.

À medida que a indústria alemã se ocupava cada vez mais com a Segunda Guerra, a demanda por brinquedos – pelos filhos de soldados e para os tradicionais mercados de Natal – chegou a ser suprida por artigos fabricados por adolescentes ou até mesmo prisioneiros de campos de concentração.

“Quão bizarro era o simples fato de que os nazistas usaram judeus para produzir brinquedos para a Alemanha”, pontua Postert.

Industriais agiram por vontade própria

Um aspecto relevante é que as empresas não eram forçadas pelo regime de Hitler a fabricar esses brinquedos. As companhias alemãs, algumas das principais produtoras globais do setor entre os anos 1920 e 1930, apostaram no apetite do mercado para produtos politizados, embora grande parte dos industriais também apoiasse os nazistas.

O regime nazista, contudo, enxergava esse movimento com ceticismo. Existia a preocupação de que o setor criasse propaganda ruim ou causasse constrangimento à ditadura, pois muitos produtos eram vistos como “não dignos” o bastante por oficiais. Esse problema foi “resolvido” com a introdução, em 1933, da Gesetz zum Schutz der nationalen Symbole, uma lei que definia um padrão de uso de símbolos do regime.

Os brinquedos passaram a ser vistoriados antes de chegarem ao consumidor. E diversos produtos foram banidos e retirados do mercado por não atenderem a padrões do regime. “Até mesmo o jogo da suástica que mencionei teria quase certamente sido banido: os jogadores que caíssem no campo que representava o golpe fracassado de Hitler em 1923 precisariam recuar no jogo. Mas aos olhos dos nazistas aquele golpe foi um ato heroico. Então, por que recuar?”, afirma Postert.
Catálogo de "Hausser", uma das maiores empresas de soldados de brinquedo na Alemanha naquela época. O catálogo é de 1936
Catálogo de “Hausser”, uma das maiores empresas de soldados de brinquedo na Alemanha naquela época. O catálogo é de 1936

Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

O regime também desaprovava o Juden raus! por acreditar que a “questão dos judeus” não cabia em um jogo e não deveria ser trivializada daquela maneira. O tabuleiro não continha insígnias nazistas, mas trazia um texto explicativo em tom casual e alegre, condizente com a intolerância aos judeus na época.

Máquinas de propaganda

Apesar de não estar por trás do esforços do setor de brinquedos, o Terceiro Reich usava esses produtos como mais uma parte da engrenagem de sua poderosa máquina de propaganda. “Importantes nazistas como Goebbels sabiam que a indústria de brinquedos era importante para propaganda. Ele ia publicamente a mercados durante o Natal e dava presentes a crianças”, conta o historiador.

Brinquedos e livros racistas, como o Der Giftpilz (muito usado como panfleto antissemita), existiam antes de Hitler se tornar o “Führer” da Alemanha, mas o regime os abraçou sem pudores. Entre as ferramentas de manipulação estava também o famoso boneco Kasper, usado em apresentações de palco de organizações partidárias nazistas e até para entreter soldados alemães.

No fim dos anos 1930, o Reichsinstitut für Puppenspiel (algo como Instituto Para Teatro de Fantoches) foi criado para fabricar esses bonecos e produzir roteiros de apresentações de propaganda. Entre as suas criações estava um fantoche judeu, que simbolizava todos os clichês antissemitas do regime: ou seja, conspiradores, violões e uma ameaça aos arianos.

Naquele período, muitos acreditavam que brincar tinha alguma relação com uma suposta cultura de raça. “O pesquisador Karl Haiding, por exemplo, viajou pela Escandinávia e por países de língua alemã, especialmente em regiões rurais, antes e durante a Segunda Guerra. Em pequenas aldeias, ele e sua equipe fotografaram centenas de crianças brincando com jogos tradicionais. Eles esperavam encontrar um ‘estilo de jogo ariano'”, afirma Postert.

Embora não prestemos muito atenção sobre isso, explica o historiador, brinquedos fazem parte do nosso cotidiano e refletem a sociedade e a maneira como pensamos. “Estranhamente, até brinquedos e jogos fazem parte da história do fascismo e do Holocausto.”

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