MP publicada nesta quinta é ‘obscura’ e visa proteger agentes públicos que cometam irregularidade, diz ministro aposentado do STJ

Por G1 e Jornal Hoje — Brasília

O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp chamou de “obscura” e “autoritária” a medida provisória, publicada pelo governo, que isenta de punição decisões tomadas por agentes públicos no combate à pandemia do coronavírus. Para Dipp, a MP visa proteger os agentes públicos que vierem cometer irregularidade, inclusive o presidente da República.
“Essa medida provisória, ela tem endereço certo. Ela quer proteger agentes públicos, em essencial do executivo, e eu diria até do próprio presidente da República, porque é uma medida desnecessária, autoritária, obscura, que visa proteger o agente que tenha praticado um ato com dolo”, disse Dipp.

A MP estabelece que os agentes públicos só poderão ser responsabilizados se houver comprovação de “erro grosseiro” ou “dolo” (intenção de cometer uma irregularidade). Por se tratar de um MP, o texto já entrou em vigor, mas precisa ser aprovado pelo Congresso em 120, senão perde a validade.

O ex-ministro da Controladoria-Geral da União Jorge Hage afirmou que é preciso “cautela” com a medida provisória.

“É preciso que essa MP 966 seja analisada com muita cautela antes da sua aprovação pelo Congresso porque ela abre, talvez excessivamente, alguns conceitos muito vagos que são adotados do tipo de erro inescusável manifesto”, disse Hage.

Ele disse ainda que uma excessiva flexibilização nas regras para agentes públicos durante a pandemia pode gerar corrupção.

“A questão é o grau de flexibilização, até onde você vai, para que você não abra brechas que permitam tudo, corrupção, desvio. Num momento de crise como esse, isso é ainda mais grave do que em condições normais”, continuou o ex-ministro.

“Porque você acaba desviando para o bolso dos corruptos e dos corruptores o dinheiro que devia estar sendo aplicado na saúde, para preservação da vida das pessoas. Então é preciso ter a medida da flexibilização. E essa MP, na minha opinião, ultrapassou esse limite”, completou Hage.

O professor do programa de mestrado em Direito da Uninove Guilherme Amorim avalia que a medida provisória busca isentar servidores de penalidade por atos praticados durante o combate ao coronavírus. Ele defende a necessidade de se questionar a legalidade e a legitimidade da MP.

Amorim apontou ainda que as medidas adotadas pelo governo neste período de pandemia já têm respaldo na lei.

“Se hoje um ato praticado por um agente público no combate à covid-19 for questionado pelos órgãos de controle como sendo um ato praticado em desfavor da sociedade civil, vai levar em conta o contexto em que esse ato foi praticado, ou seja, um contexto de urgência, calamidade pública, dentro de um contexto de combate a uma pandemia”, disse Amorim.

“Então, não precisa a medida provisória destacar isso expressamente”, completou ele.

Na manhã desta quinta, pouco depois de a MP ter sido publicada, o PSOL protocolou uma ação pedindo a devolução do texto para o governo. Segundo o PSOL, a MP “afronta” a Constituição no que diz respeito às responsabilidades do Estado.

“O alcance político e jurídico da gestão pública se condicionam na responsabilização objetiva administrativa e civil do Estado, tradição anterior à própria Constituição Federal de 1988”, afirmou o partido.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) informou que vai realizar uma reunião extraordinária na segunda-feira (18) para discutir o texto.

Segundo o jurista Eduardo Mendonça, a MP ressalta uma ideia que já está presente na lei: a de que o agente público só pode ser responsabilidade quando age com má-fé ou com culpa grave.

“Essa é uma questão importante, de preservação da segurança jurídica, para que haja previsibilidade em relação ao que é ou não exigido dos administradores em cada momento e para evitar a paralisia da cadeia de decisões”, afirmou o jurista.

Para José Luiz Souza de Moraes, procurador do estado na área da saúde, professor de direito constitucional e especialista em Direito do Estado, a MP é inconstitucional. Ele comparou o texto a um “salvo-conduto” para cometimento de irregularidades.

“É inconstitucional e em certos pontos ela é desnecessária. Ela é um salvo-conduto”, afirmou. “É algo que deixa extremamente subjetivo o que é ser descuidado. Exigir esse alto grau de negligência, tem que ser muito indiligente e sem cautela, o que destoa do mandamento constitucional”, completou.

Mérces da Silva Nunes, advogada especialista em Direito Médico, também falou em salvo-conduto.

“Isso foi um salvo-conduto para o Brasil inteiro, de forma que a responsabilização do agente público vai ser absolutamente difícil por conta dessa amplitude de base de avaliação. Nunca vai permitir a responsabilização do agente”, afirmou a especialista.

A professora Patrícia Sampaio, de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas, afirmou que a MP não isenta de responsabilidade os agentes públicos que agirem de má-fé.

“Me parece que não é uma carta branca para o malfeito, muito ao contrário, os erros grosseiros e os atos dolosos continuam sendo responsabilizados”, afirmou.

Para a especialista em direito administrativo Mônica Sapucaia, doutora em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, a MP deverá ser, “pelo menos parcialmente”, considerada inconstitucional.

“A regra (criada na MP) impossibilitaria a responsabilização de um servidor em processo administrativo ou cível quando a ação dele estivesse ligada ao combate à covid-19. Pelas normas brasileiras, isso não poderia ser feito, pois o agente público pode ser responsabilizado civil, penal e administrativamente pelos seus atos”, afirmou.

A constitucionalista Vera Chemin disse que, indiretamente, Bolsonaro pode estar tentando se proteger com a MP.

“É possível que, indiretamente, ele esteja tentando se proteger sim com a MP. Enquanto não perde o vigor ou é declarada inconstitucional, a MP continua válida e ela está deixando de responsabilizar os agentes públicos pelo que foi feito. E o Bolsonaro é um agente público, ele pode ser responsabilizado penalmente e por crime de responsabilidade pelos atos que comete”, afirmou Chemin.

Em nota, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro José Múcio, afirmou que é preciso uma “ampla discussão pelo Congresso Nacional” para que os objetivos da MP sejam legitimados pela sociedade.

No caso dos gastos emergenciais, o ministro diz que o TCU já elaborou um plano de ação que contempla a necessidade de se avaliar o momento excepcional e a agilidade em que as decisões precisam ser tomadas durante a pandemia da Covid-19.

Múcio diz ainda que “o TCU já toma suas decisões a partir de dados concretos e com responsabilidade na aplicação de penalidades”, e que os gestores sempre são ouvidos e justificam suas decisões.

G1

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