Sobre a desarmonia dos poderes

Por Paulo Afonso Linhares

Advogado potiguar de Mossoró

Um interminável rosário de crises de várias ordens tem pontuado a vida político-institucional brasileira nos últimos cinco anos, pontilhadas estas por grandes manifestações de protesto na maioria das grandes cidades brasileiras, por generalizados desarranjos nas políticas econômicas sob a batuta do governo federal e pela grande operação judiciária-policial denominada “Lava-Jato” que tem submetido a humilhantes vexames, de modo seletivo e politicamente direcionado, políticos e grandes empresários do setor da construção, culminando com um desgastante processo de defenestração da presidente de República, Dilma Rousseff, através de processo de impedimento, embora jamais tenha demonstrado de modo convincente, do ponto de vista jurídico, ter ela praticado algum dos crimes de responsabilidade enumerados no art 85 da Constituição. A este propósito, não é exagero afirmar que o maior e definitivo ‘crime’ de Dilma foi impor ao seu principal adversário, Aécio Neves, uma derrota eleitoral acachapante nas eleições presidenciais de 2014.

A partir da enorme crise política derivada da não aceitação dessa derrota eleitoral que, hoje é perceptível, nem o impeachment de Dilma Rousseff pôde aplacar, ocorreram perigosas deteriorações no âmbito de vitais instituições jurídico-políticas que podem ser traduzidas de modo singelo no aprofundamento da desarmonia entre os poderes (tradicionais) do Estado, inclusive com a hipertrofia antes improvável de um dele, o Poder Judiciário, que passou a pautar politicamente a nação. Aliás, nestes bicudos tempos que correm, têm sido constantes as indagações que, no mínimo, soam como impertinentes e alarmantes: “querem destruir o Judiciário”, “vão acabar com a Lava-Jato”, “a quem interessa o enfraquecimento da magistratura” etc.

Ora, nenhum segmento político brasileiro deseja um Poder Judiciário enfraquecido e vulnerável, garantidor que é de fundamentais aspectos institucionais da República, mormente a interpretação e aplicação da Constituição e das leis, com a solução de variados conflitos individuais, coletivos e metaindividuais; o que se pode pretender, neste momento, é que as coisas tenham seguimento pelas vias corretas: o Poder Judiciário, que não se origina diretamente da Soberania Popular, não deve pautar politicamente o país, como vem ocorrendo. Ora, a grande caixa de ressonância política da República brasileira há de ser, sempre e sempre, o Congresso Nacional, ao menos enquanto prevalecer o regime de democracia representativa.

Um retrato da cena política brasileira, neste momento, revela um Poder Executivo fragilizado pela origem espúria do governo Temer, nascido de um impeachment sem justa causa, ademais das suspeitas de participação em esquemas de corrupção sob investigação pelo Judiciário; um Poder Legislativo atarantado: a Câmara dos Deputados tem o seu presidente, deputado Eduardo Cunha, preso como acusado de graves casos de corrupção, e o Senado Federal presidido por Renan Calheiros, que tem nas costas mais de uma dezena de processos investigatórios contra ele abertos no Supremo Tribunal Federal, por suspeita de corrupção, ademais do fato de que mais da metade dos senadores respondem, também, a processos da mesma natureza.

Aliás, antes de concluir este artigo, veio a lume, neste dia 5 de dezembro de 2016, a notícia de que, atendendo requerimento do Partido Rede Sustentabilidade, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, concedeu liminar para afastar o senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal ao argumento de que, em face de ter tornado-se réu em processo-crime que tramita naquele Tribunal, o senador Renan Calheiros estaria na linha sucessória da presidência da República, o que seria incompatível. Fato é que, em menos de um ano, foram afastados de seus cargos a presidente da República e os presidentes do Senado Federal (e do Congresso Nacional) e da Câmara dos Deputados, tudo de acordo com a pauta executado à risca pela cúpula do Poder Judiciário. O próximo passo, quando janeiro chegar, será a vez do “senhor Fora Temer”, como disse empresário chinês em gafe magistral. O que fará Renan? O que dirá o Senado Federal? Cumprirão (cordeira e ordenadamente) a decisão imposta?

Por fim, aparece um Poder Judiciário, coadjuvado pelo Ministério Público, cada vez mais sequioso de poder e de privilégios para seus empoderados membros, porém, a tropeçar em suas próprias contradições: como compatibilizar alentados ganhos remuneratórios de seus membros, inclusive acima do teto dos próprios ministros do STF, com a pauta de combate à corrupção que contamina todo o aparelho de Estado brasileiro?

Os ‘penduricalhos’ de diversas acepções que engordam as remunerações de magistrados (e membros do Ministério Público) tira-lhes a legitimidade para impor aos jurisdicionados condutas compatíveis com o respeito republicano ao patrimônio público. Essas categorias de servidores do Estado efetivamente devem ter remunerações compatíveis com seus deveres institucionais, porém, jamais ao furado argumentos de que isto evita que se corrompam. Um dos deveres de qualquer servidor do Estado é não aceitar suborno, propina ou qualquer das (tantas) outras manifestações do fenômeno da corrupção, qualquer que seja a sua remuneração. Dizer que altos funcionários públicos devem ganhar bem para nãos enveredarem pela corrupção é impor ema inaceitável forma de chantagem institucional.

Aliás, tornou-se a chantagem uma prática corrente no cenário político-institucional hodierno, no Brasil. Recentemente, os membros do Ministério Público Federal que atuam na força tarefa da tal Operação Lava-Jato ameaçaram sair do caso se for aprovada pelo Congresso Nacional a responsabilização de juízes e promotores por certos abusos praticados no exercício funcional. Chantagem absurda, embora seja essa uma questão sensível a merecer maior reflexão da sociedade brasileira e não uma simples vendetta de deputados e senadores despeitados com os rumos que tem tomado a “guerra contra a corrupção” nestas paragens tupiniquins.

Pudesse o Barão de Montesquieu, o do Espírito das Leis, ser chamado a aconselhar os atuais detentores dos (desarmônicos) poderes do Estado brasileiros, não antes de lhes aplicar um severíssimo puxão de orelhas mandaria que reaprendessem aquela velha e eficaz fórmula dos “balanços e contrapesos” nascida dos espíritos práticos dos founders father ( os “pais fundadores”) dos Estados Unidos da América, seus mais diletos pupilos. Balanços e contrapesos (checks and balances) para manter a harmonia e a independência dos três poderes tradicionais do Estado brasileiro. E isso já poderia ser um bom recomeço.

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