LEÃO SERVA
COLUNISTA DA FOLHA
A história se repetiu: a estação da Luz voltou a ser consumida por um incêndio, quase 70 anos depois daquele que a destruiu inteiramente em 1946.
Além de um dos museus mais visitados da intensa agenda cultural paulistana, as chamas queimam um prédio inteiramente construído com material importado da Inglaterra (menos os tijolos) entre 1888 e 1901, que logo se tornou uma referência fundamental do tecido urbano e da paisagem de São Paulo.
Sua construção coincidiu com o momento em que a capital paulista enriqueceu com o dinheiro do café e procurou afirmar seu papel de grande metrópole, uma Nova York do hemisfério Sul. A “Capital da Solidão” estava se tornando a “Capital da Vertigem”, conforme os títulos dos livros escritos por Roberto Pompeu de Toledo, obrigatórios para quem quer conhecer a cidade.
A estrada de ferro Santos-Jundiaí foi construída pelo Barão de Mauá, que passaria à história como o grande empresário brasileiro visionário do século. A estação ocupou 7,5 mil metros quadrados do antigo Jardim Botânico, hoje parque da Luz.
Projetado e construído por arquitetos e engenheiros estrangeiros, o prédio tem características arquitetônicas semelhantes a outras estações no mundo anglo-saxônico. Até o tijolo aparente nas partes internas lembra o “red brick” londrino.
O local foi escolhido por sua posição estratégica. Embora fosse um dos bairros mais antigos (o Padre Anchieta faz referência a ele já pouco depois de fundar a cidade), a Luz era uma área afastada, com poucos habitantes mas acesso fácil ao centro.
Uma vez instaladas, via férrea e estação separaram como uma muralha a cidade ao norte e ao sul. A jornalista e urbanista norte-americana Jane Jacobs ensina que uma grande via de transportes “segmenta” o tecido urbano.
Até hoje se nota o impacto da cruz formada pela ligação Norte-Sul e pelas linhas de trem: quem vai às compras no Bom Retiro tem dificuldade de chegar à São Caetano, “a rua das Noivas”, do outro lado da avenida Tiradentes; ou ir a Campos Elíseos, do outro lado dos trilhos da CPTM (a estatal que incorporou as antigas companhias férreas).
As estações também forjaram o bairro em volta: imigrantes chegavam de trem e se hospedavam, começavam a vida em manufaturas do bairro, se fixavam, constituíam família. Depois de “fazer a vida” iam embora. Primeiro foram os italianos, depois judeus da Europa Oriental, os coreanos e mais recentemente os bolivianos.
O Jardim da Luz espelha essa vocação: entre seus frequentadores predominam os forasteiros, de outras regiões do país, da América ou do mundo; uns se distraem com as prostitutas baratas e outros ouvem os cantores sertanejos que choram a viola por um trocado, todos se encontram para confraternizar ou estabelecer vínculos.
Desde os anos 1990 os governos se convenceram de que criando museus melhorariam a frequência da região, ameaçada pela “Cracolândia” e pelo êxodo de moradores. Vem daí a recuperação da Pinacoteca e a criação do Museu da Língua Portuguesa, em um modelo inédito de gestão público-privada (a gestão é da Fundação Roberto Marinho).
O resultado ainda não foi o desejado em termos de reocupação da região por famílias. Mas os polos culturais batem recordes de público, mostrando alto índice de aprovação.
É isso que torna duplamente trágico o incêndio: além do patrimônio arquitetônico, ele queimou um lugar que a cidade aprendeu a amar desde a inauguração em 2006. Em tempos de crise econômica vai ser difícil custear sua reconstrução.