O julgamento de Jesus Cristo e as decisões judiciais atuais

A celebração da Páscoa remete-nos, inevitavelmente, ao julgamento de Jesus Cristo, que sempre desperta curiosidade nos profissionais do Direito. Aqui, todavia, não serão feitos comentários às acusações de práticas criminosas, tema que já recebeu excelentes artigos, como o de Mariana Hamm.[i] Neste espaço serão vistas, apenas, as lições que dele podem ser tiradas para os julgamentos na atualidade

Ninguém, por certo, negará a importância do que sucedeu em Jerusalém àquela época, ainda que não acredite na missão messiânica de Jesus Cristo. Basta pensar em um só aspecto, o de que o calendário do mundo ocidental gira em torno do nascimento deste personagem, tido pelas religiões cristãs como o enviado por Deus para a salvação da humanidade.

Vejamos os fatos.

Jesus, pregando em toda a região, conquistou uma popularidade enorme e isto gerava revolta nos líderes religiosos hebraicos, que nele não reconheciam a figura do Messias enviado por Deus. Além disto, atribuíam-Lhe diversos crimes, como o de blasfêmia, profanar o sábado (dia de resguardo dos judeus), subversão e intitular-se falsamente como profeta.

Todavia, a lei judaica, seguindo orientação bíblica, exigia denúncia de pelo menos duas testemunhas para dar suporte a uma acusação.[ii]Ocorre que os inimigos de Jesus corromperam, com 30 moedas de prata, Judas Iscariotes, que era um dos doze apóstolos de Cristo, para que apontasse quem era Jesus. Então Judas beijou o rosto de Jesus, sinal combinado com os inquisidores.

Efetuada a prisão de Cristo, foi ele levado à casa do
Sumo Sacerdote. Pedro, o primeiro dos apóstolos, que se achava no local, ao ser acusado por uma mulher de ser amigo de Jesus, respondeu: “Mulher, eu nem o conheço”.[iii]

Jesus Cristo foi então levado ao Sinédrio, chefiado por Caifás, que era uma assembleia de 75 pessoas, que, além de funções administrativas, tinha o poder de julgar. No entanto, ele não poderia ser condenado à morte pelos crimes de que era acusado, porque referida punição não era prevista, sendo as penas mais brandas. Por tal motivo, ele foi levado a Pôncio Pilatos, governador romano, que detinha o poder de julgar, a quem afirmaram que Cristo se negava a recolher os tributos, dizia-se ser o rei dos judeus e incitava a rebelião por toda a Judeia, estas sim condutas do interesse do Império Romano.

Pilatos, não convencido da gravidade do relatado e considerando o fato de que Cristo era da Galiléia, enviou-o a Herodes Antipas para que o julgasse. Este, todavia, não encontrando nada que o incriminasse e não vendo em Jesus nenhum sinal de que praticasse milagres, mandou-o de volta a Pilatos.

Como se vê, aí estamos diante do que hoje é previsto como um conflito negativo de jurisdição. Aí está a primeira relação do julgamento com o momento atual, sendo que, no caso concreto, ele se encerrou quando Pilatos recebeu e aceitou a competência declinada por Herodes.

Contudo, Pôncio Pilatos, recusou-se a condenar Cristo. Por três vezes hesitou em permitir a sanção máxima, mas, pressionado pela ameaça dos sacerdotes, que insinuavam que isto poderia ser levado ao conhecimento de César, e sob os gritos da população, que pedia a pena de morte, cedeu. Pilatos pediu que lhe trouxessem água, lavou as mãos e, dizendo-se inocente do que estava a acontecer, entregou Cristo à multidão, para que fosse executada a sentença de morte que eles tanto almejavam.

Pilatos, mesmo convencido de que não era o caso de impor-se a mais grave das penas, deixou Jesus nas mãos dos seus algozes. Tal tipo de atitude é sempre a mais cômoda. A expressão “lavar as mãos” passou a significar não ser o responsável por determinado ato

Pois bem, omissão igual à de Pilatos continua a ocorrer atualmente, ainda que em situações diferentes. Os omissos dão uma enorme colaboração para que as coisas piorem. São muitas as situações, que vão desde magistrados que nenhuma providência tomam contra aqueles que praticam ações condenáveis, até as pessoas do povo que, por comodismo, não denunciam práticas irregulares.

O julgamento revela ainda outra ação condenável por parte daqueles que têm o poder de julgar: curvar-se à vontade da maioria. É verdade que o julgador deve ouvir a voz das ruas, ser sensível ao pensamento da população. Mas não deve, nunca, julgar para atender a este clamor e, com isto, alcançar popularidade. Jamais deve deixar que o pêndulo da balança recaia ora para um lado, ora para o outro, a depender da pressão pública que lhe é feita.

Nos tempos de Jesus Cristo a intimidação se dava durante o julgamento, que era público e oral. Hoje ela se dá através das redes sociais de comunicação, pelas notícias na mídia, em tempo real. Não cabe ao juiz, todavia, decidir desta ou daquela forma para tornar-se querido da maior parte da população ou de determinada minoria, por mais simpática que seja a causa. Deve, isto sim, seguir a Constituição e as leis do país (estas cada vez menos prestigiadas), dar seu veredicto de forma serena e na busca do justo. E aí cessa sua missão, sem explicações, entrevistas ou manifestações nas redes sociais.

A pena de morte também foi desproporcional aos fatos e imposta pelo desejo de alguns, que ficaram enfurecidos pelas respostas de Jesus Cristo. Por exemplo, perguntado pelo sumo sacerdote se era o filho de Deus, Jesus respondeu: “Tu o disseste”. A blasfêmia, que consiste em ultraje à divindade ou religião, admitia a pena capital, porém era necessária a confirmação dos fatos por duas testemunhas. Nada disto foi levado em conta por Caifás que, aos gritos, defendeu a pena de morte, sendo seguido pelos demais.

Neste ponto é possível afirmar-se que a civilização evoluiu muito. Hoje, pelo menos no mundo ocidental, não seria admitido um julgamento por opinião diversa e muito menos permitida a pena capital.

Finalmente, vejamos a conduta do apóstolo Judas Iscariotes. Sua traição, a troco de 30 moedas de prata, beijando o rosto de Cristo para identificá-lo e possibilitar sua prisão, foi um ato que gera repulsa maior até que a omissão de Pilatos. Contudo, não é, no Brasil, um fato criminoso. Seria corrupção passiva, se tal conduta fosse prevista como crime em nosso Código Penal. Por ora, o que há é o Projeto de Lei 236 no Senado, de 2012, e uma proposta da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) visando criminalizar tal conduta.[iv]

A ação de Judas, simulando um ato de amor, que na verdade tinha a intenção de prejudicar o destinatário, é uma falta ética, que passou à história como a mais desprezível das ações, gerando sobre Judas uma revolta que chega até os dias de hoje. Com efeito, no Brasil e em outros países, há locais em que no sábado de Aleluia ainda se pratica a chamada “Malhação de Judas”, quando um boneco deste personagem é golpeado e depois queimado.

A propósito do triste julgamento de Jesus Cristo, que é o mais célebre da história, vale citar as palavras de Marco Aurélio Bezerra de Melo, para quem “… a partir desse malsinado evento, o cristianismo surge e pode fincar as suas bases filosóficas alicerçadas na regra áurea do amor-próprio, amor ao próximo e amor ao Criador, o que demarcou um novo tempo nas relações humanas”.[v]

Em suma, as lições advindas do julgamento beneficiaram a humanidade, sendo que parte delas, principalmente a omissão (lavar as mãos), ainda não foi entronizada na cultura de nosso país. Chegaremos lá.


[i] HAMM, Mariana. O Julgamento de Jesus. Ilegalidades Processuais nos Direitos Romano e Hebreu. Disponível em: https://marihamm.jusbrasil.com.br/artigos/196386015/o-julgamento-de-jesus. Acesso em 18/4/2019.

[ii] Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. Deuteronomio, cap. 19, v. 15.

[iii] Bíblia Sagra. Evangelhos canônicos. Lucas 22 (Lucas 22:54-62), Marcos 14 (Marcos 14:66-72), Mateus 26 (Mateus 26:69-75) e João 18 (João 18:25-27).

[iv] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,projeto-preve-criminalizar-corrupcao-privada-no-pais,70002401821. Acesso em 19/4/2019.

[v] BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio. Jesus Cristo. In: Os grandes julgamentos da história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 359

 é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Revista Consultor Jurídico, 21 de abril de 2019, 11h41

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