Claudia Jardim
De Bangkok para a BBC Brasil
Enfrentamento entre manifestantes e insultos racistas. De um lado as cores nacionais apropriadas como símbolo opositor, de outro, camisetas e bandeiras vermelhas. Meios de comunicação acusados de “golpistas” e um líder político capaz de despertar amor e ódio. Não fosse o verde-amarelo e o idioma usado nas palavras de ordem, a cena poderia representar a Venezuela.
A crescente polarização no Brasil entre governistas e opositores teve os ânimos acirrados na sexta-feira, após a operação da Polícia Federal contra Luiz Inácio Lula da Silva. A reação do ex-presidente e de manifestantes pró e anti-PT leva analistas políticos venezuelanos ouvidos pela BBC Brasil a traçarem paralelos entre os dois países.
Para o cientista político Carlos Romero, professor da Universidade Central da Venezuela, o menor grau de politização da sociedade brasileira, se comparada à venezuelana, “afasta” do Brasil o risco de uma polarização tensa e violenta que marca com frequência o embate político no país vizinho. “A disputa ideológica nesses anos politizou os venezuelanos”, afirmou.
A divisão social inerente à história da Venezuela se aprofundou com a chegada ao poder do líder venezuelano Hugo Chávez, morto há três anos. Defensor do socialismo, Chávez desapropriou terras para a reforma agrária, aumentou o controle do Estado sobre a a exploração petrolífera, enfrentou os meios de comunicação e quem mais atacasse a “revolução bolivariana”.
Sua retórica imediatamente seduzia as classes populares, beneficiárias da redução da desigualdade social – e repelia com a mesma força as classes média e alta.
O mito Lula foi construído sobre outras bases, destaca Romero. O ex-presidente optou pela conciliação entre os diferentes setores da sociedade brasileira, “não politizou”, mas ainda assim não pôde evitar a polarização.
“A elite nunca está disposta a ceder [para reduzir a brecha social], mas [os programas sociais] foram impostos pelo Estado nos anos ‘dourados’ do governo Lula mesmo assim”, afirmou. “A corrupção [no governo], no entanto, não pode ser atribuída como responsabilidade da elite brasileira ou dos setores privados na Venezuela.”
Lula x Chávez
Após a ação coercitiva que o levou ao posto da PF no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, para depor, o ex-presidente disse que as acusações contra ele são fruto do incômodo das classes mais altas pelas políticas sociais que promoveu no país.
“Ter acesso a universidade, emprego, ao mínimo para comer, isso incomodou muita gente e tem que destruir esse avanço dos [que vêm] debaixo.”
Lula anunciou que voltará a rodar o país junto aos movimentos populares e pediu para seu partido, o PT, “levantar a cabeça”.
O escritor venezuelano Alberto Barrera Tyszka disse que a reação de Lula lhe recordou do tom polarizado presente nos discursos de Hugo Chávez.
“O Brasil pode estar caminhando a um processo forte de polarização, mas de todas maneiras será diferente da situação vivida na Venezuela. As lideranças de Lula e Chávez são diferentes”, acrescentou Barrera, autor de “Chávez Sem Uniforme” e da ficção “Pátria o Muerte” (“Pátria ou Morte”, na tradução do espanhol), que conta as consequências da polarização na Venezuela.
“Chávez polarizou o país antes de ter uma definição ideológica. Se propôs como um herói destinado a mudar a história (…) não tenho certeza de que Lula tenha esse mesmo perfil”, afirmou.
O cenário venezuelano, no entanto, poderia se reproduzir no Brasil caso as investigações da Operação Lava Jato levarem à condenação e prisão do ex-presidente. “[Uma eventual prisão] pode acentuar a polarização e os riscos de manifestações violentas”, afirmou Carlos Romero.
De acordo com pesquisa do Instituto Vox Populi divulgada no fim de semana, 56% dos entrevistados disseram ser contrários a que a Operação Lava Jato inclua o ex-presidente nas investigações. Num universo de 15 mil entrevistados, 57% disse acreditar na inocência de Lula.
Crise econômica
Há exatos três anos de sua morte, Hugo Chávez se mantém como o ícone de adoração e repúdio na sociedade venezuelana, que enfrenta uma das piores crises econômicas dos últimos anos. Queda dos preços do petróleo –único motor da economia–, corrupção, acusações de sabotagem por setores empresariais antichavistas e ineficiência da administração do presidente Nicolás Maduro compõem o cenário da crise e de uma sociedade, até agora, irreconciliável.
De um lado estão os revolucionários; e de outro, os antichavistas.
A crise econômica brasileira é outro ponto de encontro entre ambos países. Em meio à crise política, o IBGE anunciou a queda de 3,8% do PIB em 2015, a pior retração em duas décadas.
“O retrocesso das economias também se expressa em desemprego e desânimo, e, ao mesmo tempo, no aprofundamento da polarização”, afirmou Carlos Romero, ao considerar que aqueles que deixaram de ser beneficiados por programas sociais podem ter mudado de lado.
A temperatura da disputa nas ruas no Brasil tende a subir nos próximos dias com o avanço da Operação Lava Jato e a realização de manifestações a favor de Lula e de setores pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Para o analista político, a saída para melhorar as condições de vida da população sem polarizar a sociedade seria a conquista de um projeto político que convença a maioria da população, hipótese cada vez mais distante da realidade política tanto do Brasil como da Venezuela.
“Em nenhum dos casos se conseguiu um projeto hegemônico. Sempre a metade do país esteve contra.”
*Claudia Jardim foi colaborada da BBC Brasil em Caracas, onde cobriu a política venezuelana durante 11 anos. Há quatro meses ela produz reportagens sobre o Sudeste Asiático em Bangcoc, na Tailândia.