Há um ano e meio, Jorge Hudson Alves da Silva, de 27, tira seu sustento trabalhando como entregador de aplicativos. O que ganha é usado para ajudar a criar a filha, de 4 anos, e custear as despesas de parte do aluguel da casa onde mora, em uma comunidade do Rio. Há um mês, sua situação piorou. A bicicleta usada nas entregas, que fora emprestada por um tio, foi levada por alguém que estourou um cadeado em frente à 9ª DP (Catete). Ele passou a fazer entregas a pé, e, com menos pedidos, viu sua renda despencar de R$ 50 para R$ 20 por dia. E foi justamente após uma entrega que Jorge teve um fuzil apontado para sua cabeça por um policial militar, durante o protesto “Vidas Negras Importam”, no último domingo, em frente ao Palácio Guanabara, no bairro das Laranjeiras, na Zona Sul do Rio.
A cena foi flagrada por um câmera da Globo News que participava da cobertura do protesto. Mesmo sem reagir, e colocando as mãos para o alto, o entregador foi empurrado e levado para delegacia sob acusação de resistência. Como estava com a ponta de um cigarro de maconha, responderá ainda por porte de drogas. PMs chegaram suspeitar que o rapaz pudesse ser o responsável pela quebra do vidro de uma viatura, atingido por uma pedrada, mas a hipótese foi descartada. Depois de permanecer quatro horas na delegacia, Jorge foi liberado após assinar um termo circunstanciado, já que o caso, de menor potencial ofensivo, será avaliado pelo Juizado .
Vinte e quatro horas após o tumulto, Jorge ainda foi vítima do ódio nas redes sociais. Ao postar fotos do episódio, recebeu comentários com ataques. Num deles, um internauta dizia que Jorge deveria ter morrido. Em um outro comentário, uma pessoa dizia que ele mereceu tudo o que havia acontecido. Integrante de um grupo de rap, Jorge Hudson também faz vídeos e projetos sociais na comunidade onde mora. Mesmo sendo ficha limpa, e sem jamais ter se metido em problemas com a polícia e a Justiça, o entregador disse que teve medo de morrer quando ficou sob a mira do fuzil de um PM, no domingo.
— Quando uma bomba explodiu perto de mim, minha reação foi de correr. Os PMs vieram. Em momento algum ofereci resistência. Só pedi calma e pedi para baixar a arma. Cheguei a pensar que iria morrer. Um tiro ali seria fatal. Fui levado para delegacia e só saí de lá após umas quatro horas — disse.
Acostumado a sofrer com o racismo, Jorge disse que resolveu ir ao protesto onde iria encontrar amigos que lutavam pela causa. Ele disse que pensa em processar o estado por conta de tudo o que aconteceu.
— Às vezes, por conta da aparência, a gente sofre racismo. Já entrei em um supermercado e um segurança veio atrás para olhar se eu iria roubar algo. Acho que depois disso tudo vou entrar com uma ação contra o estado — concluiu.
Um vídeo que circulou nas redes sociais mostra Jorge sendo preso por policiais militares logo após um dos agentes ter apontado-lhe o fuzil. Uma mulher protesta e acusa a polícia de deter o rapaz por estar na manifestação contra o racismo em ações da corporação. Um PM retruca e diz que está detendo o rapaz por fumar maconha. Jorge acata as ordens e se senta em frente à viatura, algemado, dizendo:
— Só fica assim [algemado, no chão] da minha cor. Só morre assim quem é da minha cor. Se for branco, morador de prédio, não fica. Essa é a minha revolta. Todo mundo morrendo nessa guerra inútil — indigna-se.
Procurador da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados (OAB-RJ), Rodrigo Mondego, que acompanhou o entregador na delegacia, disse que um PM estar portando um fuzil numa manifestação é uma situação absurda.
— Em nenhum país democrático do mundo se porta fuzil num protesto. O que aconteceu foi um absurdo — disse o advogado.
Procurada, a Polícia Militar reconheceu que o PM feriu o protocolo ao apontar a arma para um homem desarmado. O policial atuava no bloqueio do trânsito e responderá administrativamente pelo ato. Abaixo, a íntegra da nota da corporação.
“A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que, neste domingo (31/5), policiais do 2º BPM (Botafogo) e do RECOM (Batalhão de Rondas Especiais e Controle de Multidão) acompanharam uma manifestação em frente ao Palácio Guanabara, em Laranjeiras. O protesto estava transcorrendo de forma pacífica, quando um homem começou a arremessar objetos nos policiais, ele ainda fez uma tentativa de invasão ao local, o criminoso foi preso. Durante a dispersão, policiais militares tiveram a necessidade de fazer o uso de instrumento de menor potencial ofensivo para conter os manifestantes mais exaltados começaram a arremessar pedras no Palácio Guanabara e nos policiais militares.
A Corporação esclarece que o policial das imagens responderá administrativamente por ter ferido o protocolo interno ao apontar seu fuzil para um homem desarmado. O policial atuava no bloqueio do trânsito e na segurança da tropa.”