CONJUR/ Por Lenio Luiz Streck e Juliano Breda
O veto parcial do presidente da República sobre 19 artigos da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869, de 5.09.2019) acabou por gerar verdadeira descriminalização do abuso de autoridade no sistema jurídico brasileiro, contrariando de modo frontal a vontade do Poder Legislativo e, por isso, o princípio da separação dos poderes.
Explica-se. A lei aprovada estabelecia tipos penais de abuso de autoridade, oferecendo novos contornos à matéria, razão pela qual determinava, em seu artigo 44, a revogação integral da Lei 4.898/65 (lei anterior de abuso de autoridade) e o artigo 350 do Código Penal, que tipificava a conduta de “ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”, cuja pena cominada era dedetenção, de um mês a um ano.
Essa norma justificava-se na medida em que a nova lei criava, em seu artigo 9º, um tipo penal mais restritivo que o anterior, ao estabelecer o crime de “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, com uma sanção distinta e mais grave (detenção, de um a quatro anos, e multa).
Com o veto ao artigo 9º sem o correspondente veto ao artigo 44, o ato presidencial operou, por via transversa, a descriminalização do Código Penal, gerando um efeito jurídico diametralmente oposto – e por isso inconstitucional – à soberana vontade do Parlamento.
O mesmo efeito ocorreu com o veto ao artigo 43 da nova lei, que determinava nova redação à Lei 8.906/1994, criando o tipo penal de violação às prerrogativas profissionais do advogado (Artigo 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do artigo 7º desta Lei: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.).
Essa disposição era mais específica e com sanção mais grave à previsão do artigo 3º, i, da Lei nº 4.898/65 (Artigo 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.), também agora revogada pelo artigo 44 da Lei nº 13.869/2019.
Trata-se do que a doutrina de direito constitucional denomina de abuso do poder de veto, como já descrevia Manoel Gonçalves Ferreira Filho “A experiência, porém, indica um outro uso do poder de vetar parcialmente os projetos de lei. Uso que é verdadeiro abuso. A prática constitucional brasileira revela que no período posterior a 1926 os Presidentes da República brasileira souberam transformar o veto parcial em instrumento de legislação, mudaram o seu caráter de ‘faculté d’empêcher’ para ‘faculté de statuer”.[1]
Ou seja, o veto limita-se ao exercício de oposição do Presidente a ato do Poder Legislativo, e não pode estatuir, constituir, criar uma nova regra de direito, sob pena de se converter em um instrumento oblíquo de atividade legiferante do Poder Executivo, como sustentava Nestor Massena: “O veto é convite do Poder Executivo ao Legislativo no sentido de aprimorar a sua produção, apresentando-a sem eiva de não constitucional, de não conveniente; não é, porém, a substituição desse por aquele poder na atribuição, que, se não lhe é privativa, é precípua, de legislar.”[2]
O indevido e inconstitucional veto feito pelo presidente da República é, pois, verdadeira violação àquilo que Ronald Dworkin, em seu O Império do Direito, chama de “integridade na legislação”. Ou seja, um desenvolvimento legislativo normativamente consiste no exercício da legislação. Isso porque a crítica de Dworkin às assim chamadas leis conciliatórias (ou de ocasião), em última análise, visa à garantia do princípio constitucional da igualdade. Nitidamente, o veto, do modo como foi posto, cria uma situação teratológica. Um Frankenstein jurídico.
Por isso, espera-se que a maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado derrube o teratológico veto do presidente da República. Tal como sancionada, em razão desses graves e primários erros técnicos – diga-se, profundamente lamentáveis – , a Lei 13.869/2019 é inconstitucional e, sobretudo, um atentado ao Poder Legislativo brasileiro. E ao Estado de Direito.
Se o Parlamento não conseguir a maioria absoluta (veja-se, há diferença de quórum para a aprovação da lei e para a derrubada de veto), resta ao STF declarar a inconstitucionalidade do veto por abuso de poder e/ou infração à separação de poderes. Trata-se de corrigir um efeito decorrente de grave erro.
No caso, como havia uma “operação casada” feita pelo legislador entre novos tipos (que foram vetados) e tipos a serem revogados (efetivamente revogados por não terem sido vetados), não é desarrazoado sustentar o cabimento de uma interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), no sentido de que os dispositivos revogados continuam válidos, porque o veto ofendeu a proibição de proteção insuficiente de bens jurídicos relevantes (Untermassverbot) – tese que não é estranha ao STF. Afinal, a revogação sem a correspondente tipificação resultante da operação casada deixa um vazio, isto é, deixa desprotegidos bens jurídicos relevantes, o que reclama intervenção da jurisdição constitucional.
A ver, pois.
[1] O veto parcial no Direito Brasileiro. Revista de Direito Público, v.4, n.17, p.33-37, jul./set. 1971.
[2] Veto parcial. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 26, p. 441-443, out. 1951
Lênio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Juliano Breda é advogado, doutor em Direito pela UFPR.