Artigo do professor e advogado potiguar Ivan Maciel

DE JUIZ A HERÓI

Por Ivan Maciel *

Era uma vez um juiz, um magistrado, que não deixava acumular processos, que não retardava audiências, que não protelava despachos e decisões finais. Tanto assim que tinha sempre à mão uma estatística que demonstrava a sua dedicação à atividade jurisdicional. Era conhecido, fora do círculo familiar, por amigos, colegas, profissionais do Direito que funcionavam em casos submetidos à sua jurisdição e pelos alunos do curso universitário em que ensinava. Uma rotina comum, dignificante, sim, mas idêntica à de qualquer outro magistrado de primeira instância do nosso Poder Judiciário. De uma hora para outra, entretanto, haveria uma enorme transformação em sua vida funcional: foi quando passou a julgar os processos em que os réus eram políticos e empresários acusados de envolvimento num grande escândalo de corrupção. A partir daí se iniciou uma fulgurante etapa de sua biografia.

Foi sendo construída pouco a pouco a sua imagem de juiz durão, implacável, de um rigor que o tornava não só admirado como temido. Notabilizou-se pela forma intransigente, inflexível, autoritária, como conduzia a instrução processual. Talvez tenha decretado prisões temporárias e preventivas com extrapolação de seus pressupostos processuais e colhido as confissões de delatores com certo tom inquisitorial. Mas agia sempre em nome da guerra santa contra a corrupção. Bateu recordes de presteza na prolação de sentenças condenatórias, sempre com exacerbação das penas aplicadas.

Tornou-se o terror dos acusados nos escândalos de corrupção que comprometiam figurões da classe política e do mundo empresarial. As investigações e julgamentos desses escândalos (quem não se lembra?!) foram transformados em majestoso espetáculo pelos meios de comunicação. Foi quando se consumou a metamorfose pela qual um magistrado assumiu o midiático status de herói nacional. Quanto mais suas façanhas se multiplicavam e se propagavam, mais se agigantava a sua lendária figura de algoz dos autores de crimes do colarinho branco. A ponto de se consolidar gradativamente uma “liderança” que influenciou as fases investigativa e acusatória dos casos levados a julgamento.

Qualquer medida abusiva, de legalidade duvidosa ou que desbordasse das atribuições judiciais encontraria imediata justificativa na necessidade de extirpar da sociedade brasileira o câncer da corrupção. Esse objetivo se sobrepôs às preocupações com o devido processo legal. A ausência de imparcialidade do julgador passou a constituir detalhe desimportante diante da decantada e enaltecida significação histórica da missão executada pelo juiz-herói. Claro que a trajetória desse justiceiro não poderia ficar restrita ao exercício da magistratura. Acabou premiado com uma vistosa função política.

Agora, surgem revelações que, embora contestadas, evidenciam a sua absurda, flagrante e total falta de isenção, requisito jurídica e moralmente indispensável à validade das decisões judiciais, mesmo que proferidas no cumprimento de uma “tarefa heroica”. Ora, o maquiavelismo aético e amoral é que sustenta que os fins justificam os meios. O princípio da imparcialidade do julgador é pressuposto básico do devido processo legal. E o juiz que não respeita esse princípio desonra o cargo que exerce.

* Advogado, professor universitário, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras, ex-procurador-geral do RN, ex-consultor geral do Estado do RN e escritor.

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