Para presidente do Sinprofaz, entidade que representa os procuradores da Fazenda, forma com que o benefício foi concedido “causou revolta” em outras carreiras de Estado. Discussão deve ser pública e baseada em lei, afirma.
As recentes decisões sob concessão de auxílio-moradia tomadas por ministros do Supremo Nacional Federal (STF) nos últimos dias provocaram uma nova batalha jurídica envolvendo os Três Poderes. A briga se intensificou em 7 de outubro, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou o pagamento do benefício a todos os juízes do país (estaduais, federais, da Justiça do Trabalho e da Justiça Militar), com as devidas restrições, no valor de R$ 4.377,73 – o mesmo valor pago aos membros do STF.
Cerca de um mês antes, em 15 de setembro, o ministro do STF Luiz Fux já havia concedido a primeira liminar (antecipação da decisão final) em favor da totalidade dos magistrados. Antes dessa decisão, apenas ministros de tribunais superiores e alguns juízes estaduais, em 20 estados, gozavam do privilégio – além dos próprios membros do Supremo, que apenas não fazem uso do auxílio por já terem residência funcional à disposição. Esse auxílio pago atualmente varia entre R$ 2 mil e cerca de R$ 4 mil.
Depois, foi a vez de o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a Defensoria Pública da União (DPU) requererem o benefício para seus membros – sem saber, no entanto, quantos servidores terão direito ao benefício, qual o impacto disso nas contas públicas e se haverá dotação orçamentária para custear a nova demanda por auxílio-moradia. Apenas nos quadros do Ministério Público da União e dos estados há 12,2 mil profissionais, e boa parte com direito ao benefício, embora o órgão diga não dispor de tal informação.
Presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda (Sinprofaz), Heráclio Camargo disse ao Congresso em Foco que a concessão do auxílio, “causou uma revolta muito grande nas demais carreiras de Estado”. Trata-se de “absurdo jurídico” a maneira como o benefício foi aprovado e estendido a outras categorias, diz. Ele explica ainda que o os procuradores da Fazenda não são contrários, “a priori”, ao pagamento de auxílio-moradia, mas defendem que a discussão seja pública e baseada em lei, com regras feitas “à luz do dia”.
“Não queremos retirar direitos de quem quer que seja, mas que eles sejam debatidos, fundamentados e votados de forma democrática, à luz do dia, porque essa ainda é uma República de Direito, e não um Estado de vontades próprias de quem quer que seja, por mais importante que seja o cargo que essa pessoa ocupe. Ela não tem o poder de passar por cima do Congresso Nacional, da Constituição e sem debate com a sociedade brasileira. Que, com certeza, tem que saber desse auxílio-moradia estendido na calada da noite”, declarou Heráclio, para quem o assunto deve ser amplamente aprovado e debatido no Parlamento. “Não é possível que a esta altura do século 21, na era da informação, um absurdo jurídico desse seja passível de aceitação sem nenhum debate.”
“Imoral, indecente e antiético”
Heráclio lembra que a advocacia pública federal é a única função essencial da Justiça que não tem direito ao auxílio. A classe, diz o dirigente sindical, considera a concessão do benefício uma tentativa disfarçada recomposição salarial. “Foi um subterfúgio utilizado pelo Ministério Público e pela magistratura para passar ao largo da recomposição das perdas inflacionárias de todas as categorias”, disse, referindo-se à recomposição anual definida na Constituição para as carreiras dos Três Poderes.
“Sob o pretexto de recompor o valor da remuneração de juízes e promotores, criou-se um auxílio-moradia sem lei – e, estendendo esse auxílio que seria, em um primeiro momento, para juízes e promotores que não possuem residência no local de trabalho, estendeu-se para toda a categoria”, acrescentou Heráclio, defendendo isonomia e que, nesse sentido, outros servidores pleiteiem judicialmente o benefício.
“Nas palavras de vários magistrados e procuradores da República que já renunciaram a esse auxílio-moradia, ele é imoral, indecente e antiético. Seria interessante que todos os servidores públicos pleiteassem, judicialmente, o mesmo tratamento. Afinal de contas, todos têm direito a moradia digna. Considero que a população brasileira também deva ser consultada sobre essa questão: um auxílio-moradia no valor de R$ 4,3 mil enquanto o salário mínimo é de R$ 800”, arrematou.
O dirigente contesta o argumento de que existe autonomia orçamentária no Ministério Público e na Defensoria, mas não para a Advocacia Pública – que tem a mesma estatura constitucional das outras funções (“Não existe hierarquia entre promotores, advogados e defensores públicos”, diz). Para Heráclio, a decisão dos ministros do Supremo afronta o preceito constitucional da moralidade. “Eles dizem que têm autonomia, mas a autonomia orçamentária que o Judiciário tem é para distribuir Justiça, e não para pegar todo o dinheiro e colocar nos contracheques de juízes e promotores”, acrescentou Heráclio, com uma sugestão.
“Vá ver como estão os fóruns no interior, em que condições funcionam a Justiça nos estados mais pobres. Tem prédios sucateados, sem estrutura para receber a população, mas todos os juízes recebendo esse dinheiro como auxílio-moradia. Por isso a Justiça é tão lenta, porque não há dinheiro para concurso público. Não há dinheiro para as carreiras judiciárias, mas há para auxílio-moradia”, fustigou o procurador da Fazenda.
Reflexos e tecnicalidades
A decisão tomada em setembro por Fux, estendida a outras categorias, beneficia até mesmo juízes com residência própria e com atuação nas próprias cidades de origem. Um dia depois da liminar do ministro, entidades que representam outras especialidades reivindicaram formalmente que seus magistrados também adquirissem a prerrogativa. O efeito-cascata englobou juízes de Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo, além dos magistrados da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho.
Em sua argumentação para o caso dos juízes, Fux disse que diversas outras categorias profissionais gozam de direitos trabalhistas negadas aos magistrados. “Sequer recebem qualquer retribuição por hora-extra trabalhada – o que é, destaque-se, direito universalmente consagrado aos trabalhadores. Nada estão recebendo, ainda, pelo desempenho de funções gerenciais de caráter administrativo, ou mesmo pela acumulação de juízos, e de juízos com funções administrativas”, alegou o ministro, mencionando ainda adicional de periculosidade e participação nos lucros como benefícios garantidos a outras categorias que não a magistratura, o que deixaria a carreira menos “atrativa”.
Preocupada com o impacto nos cofres públicos, a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Estado do Rio Grande do Sul reagiram com mais três mandados de segurança no STF contra a liminar de Fux. Segundo a AGU, o impacto financeiro será de R$ 840 milhões ao ano só para custear o auxílio-moradia de parte dos membros da Justiça Federal (1,7 mil juízes).
A ministra Rosa Weber rejeitou todas as contestações, nesta semana, sob o mesmo argumento com que rejeitou, no início do mês, outro mandado da AGU contra a liminar de Fux a favor da magistratura (não cabe mandado contra atos judiciais, alegou Weber).
Heráclio lembra que o pleno do STF ainda vai se manifestar sobre mérito dos mandados. “A questão ainda está sub judice. A liminar [de Fux] foi deferida por uma tecnicalidade, mas a ministra Rosa Weber não apreciou o mérito, que é a falta de uma lei regulamentadora para o instituto do auxílio-moradia. Ela não conheceu o mandado de segurança, e assim indeferiu a petição inicial”, disse o procurador.
As decisões do Supremo, diz Heráclio, hierarquizaram categorias mesmo dando a ideia de que faz o contrário, por ter estendido o auxílio-moradia às demais atividades essenciais da Justiça. “A advocacia pública quer a simetria, o tratamento isonômico, mas com um debate no Congresso para saber se é possível – do ponto de vista econômico e financeiro, do interesse maior do Estado e da população brasileira – o pagamento de R$ 4.300, per capita, como auxílio-moradia”, reafirma o dirigente. “Tem de ser regulamentada uma lei, mas isso tem de ser feito à luz do dia, e não por uma decisão de um ministro do Supremo que provoque um efeito cascata.”
Impacto
Os últimos meses evidenciaram um movimento do STF pela elevação de seu orçamento. Em 28 de agosto, uma sessão administrativa realizada na corte avalizou proposta de reajuste dos próprios ministros, de R$ 29,4 mil para R$ 35,9 mil. O aumento significa alta de 22%, 17% a mais do que o percentual definido na previsão orçamentária de 2015 encaminhada pelo Executivo ao Congresso (5%, para juízes e servidores).
O governo age na contramão do ímpeto judiciário. Além das ações da AGU contra a concessão de benefícios, o orçamento do governo federal enviado ao Parlamento reduziu a previsão de gastos concebida pelo próprio STF para o próximo ano: a corte queria contar com R$ 154 milhões em 2015.
O contrataque foi rápido na Praça dos Três Poderes. Em 5 de setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou no próprio Supremo mandado de segurança para garantir que o Executivo inclua, no orçamento de 2015, a proposta de reajuste de 22% nos subsídios dos próprios ministros da corte – a demanda da PGR ainda não foi julgada. O salário dos magistrados do STF serve de teto remuneratório da administração pública, além de parâmetro para reajustes em todo o funcionalismo nacional.