Por Paulo Brondi
Em artigo publicado no último na revista Crusoé, intitulado “Bons exemplos”, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro teceu loas a figuras históricas que, para ele, deixaram exemplos a serem seguidos, entre as quais o “juiz” italiano Giovanni Falcone, considerado herói popular por, nos anos 80, combater a Cosa Nostra, conhecido grupo mafioso, sendo por isso assassinado em 1992.
Desconfio que Moro não detenha por ora o conteúdo intelectual suficiente para ser um bom articulista. Não é a primeira vez que nos deparamos com palavras suas de louros próprios e autocomiseração. Num texto confuso e entorpecente, com passagens desconexas, buscou por vias transversas — o elogio a outrem, procurando neste virtudes assemelhadas — vangloriar-se, lançando mão de tática mofada e pueril.
Para tanto, disse se espelhar em Giovanni Falcone. Infelizmente, Moro se esqueceu de mencionar — acredito que mais por desconhecimento e falta de leitura — que Falcone não era propriamente um juiz, nos moldes brasileiros, mas, sim, um promotor de Justiça ou procurador da República. Meteu alhos com bugalhos.
É que, na Itália, o Ministério Público é instituição integrante do Poder Judiciário e, portanto, seus membros recebem a mesma denominação (magistrados ou “giudici”) daqueles que integram a carreira da magistratura judicante. Tanto é verdade que o Ministério Público, na Constituição italiana, é mencionado apenas três vezes, dentro do Título IV, da magistratura. No próprio Código de Processo Penal italiano, o membro do “pubblico ministero” é citado como “magistrado” (vide artigo 51).
Em texto de Emiliano La Ganga, encontra-se: “Giovanni Falcone foi um magistrado italiano. Como é sabido, existem os magistrados investigadores (promotores/procuradores) e os magistrados judicantes (juízes de Direito), Giovanni Falcone era um magistrado investigador, em outras palavras um Procurador (adjunto) da República Italiana (denominado Ministério Público durante o desenvolvimento da função judiciária). A sua função, portanto, não era aquela de decidir os processos, condenando ou absolvendo os réus, mas aquela de conduzir as investigações preliminares (portanto coletar os elementos de prova), promover a ação penal e postular a punição dos delitos, sendo considerado parte no processo” (tradução do autor).
No mesmo sentido, Marco Fabri e Daniela Cavalini: “Em Itália, tanto os juízes como os magistrados do Ministério Público pertencem a um único corpo: a magistratura. O termo ‘magistrado’ aplica-se, por isso, de forma indiferente tanto a um juiz como a um magistrado do Ministério Público, pertencendo ambos a uma única categoria (…)” (“O papel do Ministério Público”, Almedina, 2008, p. 168).
É de corar que o ilustre Sergio Moro disso não saiba. Causa espécie cogitar a possibilidade de que, sabendo, haja-nos sonegado a informação.
Digo isso porque, para o desavisado, nada mais natural que se tenha na figura de Moro o ponta-de-lança da dita operação “lava jato”, no front do combate à mais alta e daninha criminalidade do colarinho branco, como ele sempre desejou ser visto e de cuja vestimenta jamais se despiu.
Porém, à diferença de Falcone, Sergio Moro fazia parte do Poder Judiciário brasileiro, e, como juiz de Direito, seu dever constitucional era tão somente o de julgar com imparcialidade, e não de pretender se pôr na linha de frente de qualquer combate, por mais nobre que se lhe parecesse. Moro era julgador, mas trazia na alma ademanes de acusador. Erro crasso!
O “maxiprocesso” (processo judicial no qual foram condenados centenas de mafiosos), que se iniciou pelas investigações do “pool antimáfia”, do qual faziam parte Falcone e Paolo Borsellino, homens de prol, foi conduzido de maneira discreta e imparcial pelo juiz (este, sim, integrante da magistratura judicante italiana) Alfonso Giordano, cujo nome repousa candidamente na história. Esta, sim, era a figura na qual deveria Moro se espelhar.
O ex-juiz confessou toda sua parcialidade ao julgar os delitos relacionados à famigerada operação “lava jato” quando disse, textualmente: “Eu, particularmente, sempre me inspirei no trabalho do juiz italiano Giovanni Falcone, que se notabilizou no combate à Máfia (…)”. Ora, um juiz de Direito se inspirando no trabalho de um… Promotor de Justiça.
Talvez Moro tenha eleito para si a carreira errada, porque em sua mentalidade — ingênua, pra dizer o mínimo — em nada se assemelha a um verdadeiro julgador, discreto, imparcial, avesso a confetes, holofotes e acepipes, como é do dever judicante.
Aliás, cita que foi convidado a prefaciar a publicação em português de um livro do abrilhantado jornalista norte-americano Alexander Stille sobre Falcone e outros, “esquecendo-se” de também contar que Stille, tempos depois, arrependeu-se no Twitter: “Desculpe. Eu não sabia que ele estava se juntando ao governo Bolsonaro”.
Que saibam todos: Falcone não era um juiz de Direito, não julgava; era, sim, membro do Ministério Público italiano, investigava, acusava; era parte interessada na condenação daqueles que investigava e acusava. Sua faina em nada convergia com a de Moro. Ponto. E que saibam todos ainda: referir-se a Giovanni Falcone como um juiz, sem esclarecer o quanto acima, é fraude historiográfica que Moro jamais fez questão de corrigir, e bastaria a tanto rápido estudo. Mas a verdade não saiu, ficou em casa…
Macunaímico, parece repetir: “Eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa aguento firme no toco”.
Disse a uma turma de promotores de Justiça, certa vez, o juiz de garantias chileno Eduardo Gallardo: “Juiz não combate a corrupção, a criminalidade. Problema de segurança pública não é meu problema. Minha função é analisar as provas do processo e julgar com imparcialidade quem quer que seja, condenando ou absolvendo”.Alvíssaras!
A parcialidade de Moro na condução dos processos da operação “lava jato” é evidente, salta aos olhos. Ao aspirar ser reconhecido pela “sua luta” contra a corrupção, o ex-juiz tirou a toga, vestiu o colete, abotoou a estrela e afivelou o coldre.
Sergio Moro parece, após sua debacle, agarrar-se à tal “operação” como o náufrago que com afinco segura o naco de madeira, no qual deposita a derradeira esperança. Sua figura pública, já em princípios de derretimento, é a causa maior do artigo capadócio. Fia-se no passado, parecendo lamentar o presente e temer o futuro.
Compreensível: a aura do imaculado e polido julgador imparcial defenestrada pela #VazaJato, do The Intercept; ilusões de Ministério esfumaçadas num átimo. “Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair em branco o maldito número”.
O ensinamento de Brás Cubas lhe poderia servir, para que aprenda em vida as lições que o morto nos legou ao depois: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, em conhecidos, nem estranhos; não há plateia”.
O esforço hercúleo para ainda colorir a imagem do incansável e escorreito combatente anticorrupção, da alma superior e ilibada que se deixa fotografar trazendo em mãos a própria marmita, pode ter levado Moro a produzir o texto tragicômico. Não arrebatou aplausos, senão apupos.
Dispa-se, Moro, de uma vez por todas do figurino de outrora, já não é — se algum dia foi — o chicote moral da nação. Abandone a “moral de Tartufo”.
Quem raramente lê o que escrevo sabe que respeito tributo à genialidade de José Ingenieros — o qual, penso, Moro não leu, a julgar por sua entrevista a Pedro Bial, ficando aqui a indicação de leitura —, que, no seu delicioso “O homem medíocre” escreveu: “Pululam homens respeitados, à força de não serem descobertos sob o disfarce; bastaria penetrar na intimidade de seus sentimentos, um só minuto, para advertir sua duplicidade e trocar por desprezo a estima (…) a máscara é benéfica nas mediocracias contemporâneas, apesar de que os que a usam carecem de autoridade moral diante dos homens virtuosos. Estes não acreditam no hipócrita, uma vez descoberto; não acreditam nele nunca, nem podem dar-lhe crédito quando apenas suspeitam que mente: quem é desleal com a verdade, não tem porque ser leal com a mentira”.
Um adágio italiano tão popular quanto aqueles trazidos por Moro no introito do artigo é este: “L´abito non fa il monaco” (o hábito não faz o monge).