2 em 3 menores infratores não têm pai dentro de casa

O rapper MC Cafuzo, ex-interno da Fundação Casa, em SP

FABRÍCIO LOBEL
ROGÉRIO PAGNAN
FOLHA DE SÃO PAULO

Cansado de ver a mãe agredida pelo padrasto, o estudante Filiphe Gomes, aos 12 anos, decidiu enfrentar um adulto violento. Puxou uma faca e disse que não aceitaria mais aquilo.

A tragédia de Filiphe foi ver a mãe tomar o lado do marido. Foi o impulso que faltava para que fosse morar na rua, debaixo do viaduto do Chá, no centro da capital paulista. Não demorou para ganhar más companhias e, na sequência, um novo abrigo: a Fundação Casa, após um assalto à mão armada.

Filho de uma família desestruturada, de baixa renda e baixa escolaridade, Filiphe, hoje o MC Cafuzo, dá vida a números de um levantamento inédito feito pelo Estado de São Paulo. Segundo o relatório, dois em cada três jovens infratores vêm de famílias que não têm o pai dentro de casa.

O estudo leva em conta cerca de 1.500 jovens entre 12 e 18 anos que cometeram delitos na cidade de São Paulo entre 2014 e 2015. Desse universo, 42% dos jovens, além de não viver com o pai, não tinham nenhum contato com ele.

“Vi meu pai duas vezes na vida. E é nítido quanto peso a ausência dele teve psicologicamente”, diz MC Cafuzo, hoje com 24 anos e pai de uma menina de dois. Desde os seis anos de idade, ele e os dois irmãos mais velhos tomavam conta de casa, já que a mãe, auxiliar de enfermagem, fazia jornada dupla –além de trabalhar, estudava para ser enfermeira.

“Ela saía às 6h da manhã e voltava às 23h. Eu ia para a escola de manhã, voltava pra casa e tinha que cuidar das tarefas domésticas. No intervalo disso, a gente ia para a rua”, conta ele. Foi na rua onde teve o primeiro contato com o crime. Começou com furtos e logo estava no tráfico.

Segundo o estudo, além da família, outro sistema de freio à entrada de crianças na atividade criminosa é a escola, que sofre com a evasão de alunos e é pouco atrativa. De acordo com a pesquisa, apenas 57% dos adolescentes infratores estudam. “Mesmo que o jovem esteja na escola, é preciso entender também qual o grau de instrução que está tendo”, diz o promotor.

A falta de interesse foi citada por 38% dos jovens que abandonaram as aulas. Esse dado é confirmado pela experiência de Cafuzo. “Fiz até a 8ª série [atual 9º ano]. Mas eu ia só para merendar, jogar bola, namorar e conversar com os amigos. A aula sempre foi muito desinteressante para mim.

Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que a derrocada da vida de um adolescente –a ponto de levá-lo para o crime– começa quando, ainda criança, ele perde os vínculos positivos e passa a sofrer privação emocional. Os vínculos positivos não precisam ser necessariamente com as figuras paterna e materna, mas eles são absolutamente necessários.

“Precisa haver esses vínculos. Seja com o pai, seja com a mãe, com o professor, amigo. Ou os vínculos serão feitos com indivíduos ligados à delinquência”, diz o professor Sérgio Kodato, coordenador do Observatório da Violência e Práticas Exemplares da USP Ribeirão Preto.

Ele elogia os programas existentes nos EUA que colocam uma espécie de padrinho para acompanhar menores infratores. “É um cara que vai levá-lo para casa, vai estabelecer um vínculo. Vai arrumar uma atividade ou um emprego, acompanhá-lo na escola.”

O professor de criminologia clínica da Faculdade de Direito da USP, Alvino Augusto de Sá, também considera nociva a forma como a sociedade –incluindo a Justiça– trata os infratores. “Todo mundo só o enxerga como inimigo, como bandido, e ele acaba necessariamente se enxergando como inimigo.”