Eu que já acho o ó do borogodó sair enrolado com a bandeira do Brasil em final de Copa do Mundo quase tive uma síncope quando vi, certa vez, uma criança correndo com uma esvoaçante bandeira do Estado de São Paulo, tendo os satisfeitos pais ao lado – feito aqueles comerciais de margarina em que tudo sorri. Inclusive o triglicérides.
Deu vontade louca de chamar o Conselho Tutelar. Cadê as instituições deste país quando mais precisamos delas? O Didi? O Criança Esperança?
Parte da minha vida passou diante dos meus olhos feito um filme B…
Lembrei-me da época em que um bando de gênios começou uma campanha para separar o Rio Grande do Sul do restante do país. Depois, vieram outros e ampliaram a ideia para toda a região Sul. A “República do Pampa” nasceria grande, mais rica e mais branca, que o restante desse Brasil pardo que ficaria para trás.
Enfim, alguém meteu São Paulo lá no meio – para a alegria da paulistaiada que esquece que a razão de seu sucesso passa também pela exploração dos recursos naturais e da força de trabalho de outras regiões do país.
E taí a Polícia Federal que não deixa este japonês mentir. Nesta quinta (30), foi realizada a Operação Rios Voadores, que apontou o pecuarista paulista Antônio José Junqueira Vilela Filho como o comandante da maior organização criminosa responsável pelo desmatamento e grilagem de terras na Amazônia entre 2012 e 2015.
Voltando ao filme B da minha vida. Lembro que o pai de um amigo tinha uma adesivo com São Paulo e a região Sul formando outro país. Maldita sensação de vergonha alheia.
E falando em vergonha alheia, quantas vezes vocês não ouviram alguém tentar explicar as razões pelas quais o “povo paulista” é o mais trabalhador do Brasil? Mimimi que, invariavelmente, termina criticando “nordestinos” – gentílico genérico com a qual alguns paulistas tratam quem vive acima do Trópico de Capricórnio.
Para quem não sabe, incutimos o espírito bandeirante em nossa criançada desde cedo para que ela, quando adulta, saiba colocar os outros exatamente em seu lugar. Hoje, fico matutando se determinismo geográfico era disciplina oferecida na escola ou se era ensinado como conteúdo transversal.
O fato é que pais de alguns amigos defendiam sandices sob justificativas que fariam corar o doutor Joseph Goebbels na Alemanha hitlerista. Em grande parte por ignorância, mas alguns por convicção formada na reflexão. Desses, eu tinha medo.
E como não se lembrar dos cartazes indignados que apareceram, aqui e ali, em manifestações de rua, no último ano, dizendo “São Paulo exige respeito”.
E os operários maranhenses que morrem soterrados em obras de São Paulo? E as meninas paraenses que são forçadas à exploração sexual em São Paulo? E os costureiros bolivianos que são escravizados em São Paulo? E os camponeses que são removidos de suas terras para produzir a carne do churrasco de São Paulo? E os indígenas que são desterrados em nome da energia elétrica que move o nosso ar condicionado em São Paulo? Eles não merecem respeito?
O fato é que há uma parte de São Paulo que exige respeito, mas não se importa muito com o desrespeito que pratica no Brasil e, por que não, no mundo afora. Através de nossos hábitos de consumo, através de nossa hipocrisia, através de nossas justificativas de progresso e crescimento econômico usadas para passar por cima dos “entraves” humanos e ambientais.
Agora me diga: qual a chance de uma pessoa condicionada, desde cedo, no “paulistanismo”, o nacionalismo paulista, que funciona como uma espécie de seita radical aos seus adeptos, achando que aqui é o céu e o restante do país, o inferno, conseguir enxergar para além de uma divisão territorial e promover justiça social de fato a fim de melhorar o Brasil?
Qual a chance de pessoas que ouviram a promessa de que seriam os maquinistas da “locomotiva da nação” ao serem informados que São Paulo é apenas mais um estado (que depende do restante do país e está em dívida com ele – e não me venham com esse outro mimimi do repasse de impostos que não chega nem aos pés do que tomamos) não sentirem que estão tendo seus privilégios atacados?
Dentre os jovens paulistas que desaguaram nas ruas em 2013 ou em 2015, uma parte foi preparada, ao longo do tempo, pela família, escola, igreja e mídia para encararem o mundo sem muita reflexão. Não significa, contudo, que sejam conservadores, mas acreditaram em respostas simples e empacotadas feitas para que grandes mudanças garantam que tudo possa continuar seguindo seu curso.
O desafio é que, diante de comportamentos questionáveis e pouco democráticos, como pequenas campanhas pela separação do restante do país, externamos o nosso desprezo. Sejamos racionais, São Paulo não vai se separar. Mas esse tipo de mobilização não deve ser vista como uma doença, mas como um sintoma. Sintoma de um tempo de dúvida e transformação.
Muitos desses jovens estão descontentes, mas não sabem o que querem. Sabem o que não querem. Neste momento, por mais agressivos que sejam, boa parte deles está com medo. Pois cobrados de uma resposta sobre sua insatisfação, no fundo, no fundo, conseguem perceber apenas um grande vazio.
O fato é que há um déficit de democracia participativa que vai ter que ser resolvido. Só votar e esperar quatro anos não adianta mais. A saída ainda passa por uma reforma política que inclua ferramentas de participação popular. Lembrando que aumentar a democracia participativa não é governar por plebiscito – num país como o nosso, isso significaria que os direitos das minorias seriam esmagados feito biscoito.
A hora, portanto, é convidar todos esses jovens para o diálogo e não o confronto. Construir com eles a narrativa de um mundo realmente mais democrático e includente e dialogar para tentar entender como esse Estado pode ajudar a construir um país mais justo ao invés de continuar explorando-o.
A bandeira do município de São Paulo traz a expressão em latim “Non Ducor Duco”. Não sou conduzido, conduzo. Uma besteira sem tamanho.
Um bom ponto de partida para refletir sobre outras bandeiras que podem fazer mais sentido do que aquelas que nos acostumamos a carregar.