Um segundo relatório, este do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), aponta mais uma série de casos de tortura praticados em presídios do Pará por agentes da força-tarefa de intervenção penitenciária enviada ao estado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.
O primeiro documento oficial que registrou os maus-tratos e agressões aos presos foi uma ação de improbidade administrativa assinada por procuradores da República pedindo o afastamento do coordenador da ação federal.
Moro, e o diretor-geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), Fabiano Bordignon, defendem a atuação da força-tarefa e negam qualquer prática de tortura.
Os quatro peritos independentes do MNPCT estiveram nas unidades prisionais do Pará entre 17 e 20 de setembro. O relatório, que mostra diversas fotos das supostas torturas, foi concluído e remetido a órgãos estaduais e federais nesta quarta-feira (6), cobrando apuração dos casos e que agentes sejam afastados de suas funções.
Entre as violações apontadas está a existência de um “calabouço da tortura” no Centro de Recuperação Prisional do Pará, uma ala de isolamento e castigo em que os termômetros batiam 40ºC e os detentos ficavam em meio a esgoto. Parte deles passou 17 dias bebendo água da privada. O local foi omitido pela força-tarefa no momento da inspeção.
“Era completamente impossível passar uma hora que fosse lá dentro. Entramos sem acreditar que aquilo estava em funcionamento”, contou o perito Luis Gustavo Magnata à Folha. O grupo determinou a imediata desativação da ala e que os presos fossem enviados a outro bloco.
“Estado e União estavam lá dentro e os dois corroboraram com aquela situação completamente indigna“, diz Magnata se referindo aos agentes estaduais e federais que atuam na unidade.
Outras torturas identificadas foram as agressões com cabos de vassoura, presos com dedos quebrados, bebendo água suja, outros há mais de um mês sem escovar os dentes ou há dez dias sem roupas.
Também a obrigatoriedade do “procedimento”, ou ficar horas sentados no chão com as mãos entrelaçadas na cabeça, inclusive deficientes, presos com transtornos mentais ou graves doenças.
Foi registrado ainda o disparo de spray de pimenta nos presos após o almoço, o que os levava a vomitar uns sobre os outros. Relatos dos detentos apontaram que um interno morreu asfixiado pelo spray.
No Centro de Reeducação Feminino, era distribuído apenas um absorvente por mulher. Elas também denunciaram ter sido obrigadas a se sentar nuas em cima de formigueiros. Uma das detentas conta ter tido um aborto após ser espancada por um agente federal.
Ainda segundo o relatório, a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) fechou presídios, transferiu e amontoou detentos em poucas unidades para que a superlotação fosse um “espaço de punição coletiva perene”.
O grupo, define o documento, tem um “padrão violador de atuação”: deixar os presos incomunicáveis, suspendendo visitas de familiares e advogados; impedir que detentos sejam conduzidos para audiências judiciais; interromper atendimento médico; retirar itens de vestuário, higiene, calçado, medicamentos e documentos; e aplicar sanções coletivas sistemáticas.
“Um dos presos percebe a si próprio e aos outros como ‘cachorros doutrinados’”, diz o relatório.
A inspeção do Mecanismo nos presídios foi motivada pelo massacre no Centro de Recuperação Regional de Altamira, em 29 de julho, que terminou com a morte de 62 presos —parte deles decapitados— após confronto entre facções rivais.
A maior rebelião do ano fez o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), pedir ajuda a Moro, que, no mesmo dia, autorizou o envio da força-tarefa federal para intervir em 13 unidades paraenses.
“A informação inicial que tínhamos era de que a força-tarefa iria ao estado por causa de Altamira. Mas os agentes federais nunca estiveram em Altamira”, conta o perito Magnata. Lá, segundo ele, quem assumiu a gestão da unidade foi a Polícia Militar, “com o mesmo modus operandi de violações que a FTIP”.
A permanência dos agentes federais no Pará foi prorrogada mais de uma vez e o grupo deve permanecer no estado até o fim de janeiro.
A FTIP foi criada em 2017 e sua atuação foi intensificada este ano, na gestão de Moro. Os agentes federais já foram enviados para Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte e Ceará.
“Há dois anos pedimos ao Ministério da Justiça que crie padrões, procedimentos para a força-tarefa e divulgue oficialmente essas diretrizes e regras, que hoje não existem”, afirmou Magnata.
Em 2 de outubro, a ação do Ministério Público Federal (MPF) resultou no afastamento do coordenador da força-tarefa, Maycon Cesar Rottava, por meio de decisão cautelar da Justiça Federal.
No dia 16 do mesmo mês, após o governo federal recorrer, o desembargador Olindo Menezes, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, determinou que o coordenador retornasse à função.
Este é o primeiro relatório divulgado pelo Mecanismo de Combate à Tortura desde que o órgão sofreu represálias do governo federal.
O grupo, que é vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foi impedido de viajar pela pasta para apurar denúncias de violações da força-tarefa no Ceará em fevereiro. Quatro meses depois, os peritos foram exonerados por um decreto do presidente Jair Bolsonaro. A decisão foi suspendida pela Justiça em agosto, quando eles voltaram a atuar.
OUTRO LADO
Procurado para comentar o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Depen, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pela força-tarefa, afirmou não reconhecer as “alegações de tortura” durante ação dos agentes federais em presídios no Pará.
Em nota, disse que a força-tarefa “promove a humanização da pena na medida em que retiram o domínio nefasto das organizações criminosas sobre os demais presos, representando os direitos humanos na prática e não apenas nos discursos. As estatísticas de atendimento aos presos demonstram comprovadamente o êxito das ações”.
Ainda de acordo com a pasta, a atuação tem apoio do governo do Pará, do Ministério Público e do Poder Judiciário. “Todas as denúncias recebidas são tratadas e estão em processo de apuração pela Corregedoria e pela Ouvidoria do Depen. Até o momento, nenhuma das alegações de tortura foram comprovadas.”
O órgão afirma que laudos de perícias feitas em 64 presas e 11 presos, a pedido do MNPCT, deram negativo para tortura.
A Susipe (Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará) não respondeu aos questionamentos da Folha até esta publicação.
FOLHAPRESS