Por Fernanda Valente
Nos últimos anos, parte da magistratura deixou de lado a imparcialidade e o papel contramajoritário por receio de vaias da opinião pública e por ouvir demasiadamente a voz das ruas. Como forma de garantir a estabilidade e boa imagem, os juízes formaram consórcio com a polícia e Ministério Público e julgou-se muito com base na capa do processo e com o nome dos envolvidos.
A atitude foi um erro que deve ser percebido e corrigido agora, conforme analisa o juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal criminal em São Paulo. Para ele, o juiz deve ser neutro no processo, como forma de evitar espetacularização das decisões e garantir o devido processo legal.
“Ou o juiz retoma a neutralidade ou estará fadado ao fracasso, o total descrédito do Judiciário, que é o que está acontecendo. Ser juiz hoje exige muita coragem, tem que ser vocacionado e precisa ter humanidade”, afirma.
Mazloum é taxativo ao classificar como distópica a operação “lava jato”. Ainda que tenha seus méritos, diz o juiz, a operação teve viés político e “está fazendo mais mal do que bem ao país”, além de ter afetado diretamente os magistrados que viram na figura do ex-juiz Sergio Moro um super-herói.
“Todo juiz parecia querer ser Moro. Então a gente via ‘Moro de saia’, ‘Moro do Nordeste’, do Sudeste, ‘Moro de sunga’. É péssimo esse tipo de engajamento”, critica.
De acordo com o juiz, não se pode ter dúvidas da veracidade das conversas entre procuradores da força-tarefa de Curitiba, divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Ainda que seja uma prova ilícita, Mazloum afirma que o conteúdo é factível e basta comparar as mensagens aos fatos.
Tendo passado pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, Mazloum afirma que a Corte não está livre de pressões, mas acredita que “os juízes que estão lá têm todas as condições de realmente restabelecer a legalidade e mostrar que não há lados no processo”.
O juiz é filho de imigrantes libaneses e começou a trabalhar desde criança no comércio do pai, na região da Penha, em São Paulo. Escolheu pela carreira jurídica e diz que sempre teve vocação maior para o Direito Constitucional e Criminal.
Exemplo disso foi o início de sua carreira, como delegado de polícia, num cargo que exerceu durante seis meses. Depois foi promotor de Justiça. Na magistratura federal, passou pela Vara de Execuções Fiscais em Presidente Prudente e na Vara Civil de São Paulo, como substituto.
Aos 59 anos, o juiz concilia a atuação na 7ª Vara Federal Criminal com aulas de Direito Constitucional na FIG-Unimesp, em Guarulhos, local onde trabalha há mais de 20 anos e onde formou-se.
Leia a entrevista abaixo:
ConJur — Como o senhor analisa a magistratura hoje?
Ali Mazloum — A situação hoje é de extrema arrogância dentro da magistratura e isso é um problema. É chegado o momento de fazer uma análise reflexiva, um exame de consciência: por que nossa magistratura chegou onde chegou? Não adianta ficar apontando o dedo para os outros. Nós não temos alguma culpa também? Enquanto os juízes não fizerem mea culpa a gente vai de mal a pior. Os juízes precisam assumir responsabilidades: nós erramos e erramos sim.
ConJur — Em que sentido?
Ali Mazloum — Erramos a partir do momento que abdicamos da neutralidade e passamos a ser também militantes engajados em causas ou ideologias. Isso é visto a olhos nus em vários setores do Poder Judiciário. Os juízes nada fizeram, ao contrário, de alguma maneira contribuíram para a polarização que vemos na sociedade — alguns de forma mais engajada, outros pela omissão.
ConJur — Em sua opinião, os juízes se deixaram influenciar pela “voz das ruas” colocando de lado o papel contramajoritário?
Ali Mazloum — Com certeza. Nós erramos e nos perdemos quando começamos com essa história de ouvir as vozes das ruas e julgar processos pela capa e nome dos envolvidos. Deixamos o barco correr porque havia um clamor popular e o juiz acabou realmente tomando um lado.
Existem casos em que o Judiciário aplica dois pesos e duas medidas para a mesma situação. É a verdadeira abdicação da neutralidade dos operadores do Direito! O juiz precisa ser neutro e ouvir os dois lados. Faço essa reflexão e venho denunciando isso há bastante tempo. É a hora do juiz, como disse o ministro Gilmar Mendes, do STF, vestir as sandálias da humildade.
ConJur — Em que sentido houve erro?
Ali Mazloum — Nossa culpa foi permitir ilegalidades tanto pela polícia quanto pelo Ministério Público. O juiz acabou se consorciando para garantir a ele estabilidade, não ser vaiado, mas sim bem falado. A ilegalidade fez parte de muitos processos judiciais. Nós permitimos que esse consórcio entre juiz, MP e polícia tomasse as proporções que tomou. Digo nós no sentido de que o STF, corregedoria e juízes se engajaram e acharam isso bacana. Que virariam um novos heróis.
Temos que deixar de olhar para a capa do processo, para o nome da pessoa, e não ligar para o que as ruas estão falando. O material de trabalho do juiz é aquilo que está no processo, não importa quem. Se tiver que absolver tem que absolver, contra a vontade que pode até ser majoritária da população, mas o papel do juiz é esse. Se tiver que condenar, condena.
ConJur — A operação “lava jato” é um dos exemplos escancarados desse modus operandi?
Ali Mazloum — A “lava jato” tem lá os seus méritos, mas trouxe mais malefícios que benefícios. Não é preciso destruir uma casa para arrumar uma telha, e a “lava jato” fez exatamente isso. Hoje, olhando pelo retrovisor da história, percebo que esse título bonito e pomposo que deram teve lá seus desatinos e muitas ilegalidades, antes mesmo de serem reveladas as conversas peloThe Intercept.
Penso que o que eu chamo de “efeito Moro” foi um péssimo exemplo para a magistratura. Num determinado momento, o que eu vi entre colegas Brasil afora, é que todos queriam ser Moro. Todo juiz parecia querer ser Moro. Então a gente via “Moro de saia”, “Moro do Nordeste”, do Sudeste, “Moro de sunga”. É péssimo esse tipo de engajamento. A forma como eu vejo a “lava jato” é de que ela teve seu viés político muito claro e isso foi muito ruim para o país e para o Estado Democrático de Direito.
ConJur — Por que Moro é um péssimo exemplo?
Ali Mazloum — Estou falando de fatos, ele se destacou de forma extraordinária, adquiriu popularidade, é tratado como herói e essa sua projeção o levou a ascender a um cargo de ministro da Justiça. Chegou a ter promessas, como vemos hoje com as conversas do Intercept, de que ele seria alçado ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Hoje há quem diga que mesmo essa cadeira ficou pequena para ele e que ele tem que ser Presidente da República! Veja, essa projeção e tratamento de super-herói que acabou incentivando um péssimo exemplo para os juízes, e todos os magistrados querem ser heróis.
ConJur — Como evitar que surjam novos heróis togados dentro do sistema de Justiça?
Ali Mazloum — O juiz deve voltar a ser neutro e, claro, as corregedorias e tribunais superiores têm que estar atentos. O processo tem que ser julgado sem esperar aplausos ou para as vaias. Tinha procurador falando em ser senador, um outro queria ser ministro do Supremo, outro abrir uma empresa de compliance, enfim, virar luzes da ribalta, celebridades instantâneas na calçada da fama. Isso é a antítese do que deve ser um juiz.
ConJur — O senhor citou as conversas entre procuradores e o então juiz Sergio Moro vazadas pelo site The Intercept.Vazamentos para a imprensa ajudam na investigação? São lícitos e legítimos?
Ali Mazloum — O ponto de todos vazamentos é que se quem está liberando as informações de uma investigação for um agente público ele está cometendo um crime. Como existe o sigilo da fonte, dificilmente se apura quem vazou. Já o jornalista, que está cumprindo seu papel, não tem responsabilidade nenhuma.
Sobre o Intercept, não se duvida da veracidade das conversas, ninguém pode ter dúvida disso! É uma prova ilícita? Sem dúvida, mas do conteúdo eu não tenho dúvida nenhuma. Afinal, é só comparar a conversa com o real e ver como as coisas aconteceram. As conversas não podem ser usadas para punir [Deltan] Dallagnol e companhia, mas isso é extraído da própria Constituição e da jurisprudência, não só nacional como internacional. A vítima, aquele que teve o seu direito violado, pode usar esse tipo de prova ilícita para defesa dos seus direitos. Mas não pode ser usada para punir.
ConJur — Qual sua avaliação da qualidade das investigações no Brasil? E o instituto das delações?
Ali Mazloum — As investigações passam por momentos. Houve uma época em que era a fase da interceptação telefônica, então só se fazia interceptação! Depois foi com época de denúncias anônimas, aquela fase em que membros do MP, por exemplo, plantavam notícias no jornal.
Hoje, a cereja do bolo são as delações, que vêm sendo muito utilizadas de forma equivocada. As delações, já se comprovou, não são confiáveis. Ainda assim a gente vê até condenações baseadas unicamente em delações. Ela deve ser um meio de prova para dar um norte para a investigação. Essa espetacularização das delações, como se aquilo fosse prova e uma verdade absoluta, é prejudicial. A imprensa noticia de forma muito estrondosa porque são personagens públicos envolvidos.
ConJur — Sem delações, condução coercitiva ou grampos existiria “lava jato”?
Ali Mazloum — Não, de jeito nenhum. As delações foram essenciais para o avanço as investigações. O que se percebe é que algumas delações foram obtidas mediante o uso de provas ilegais, por exemplo. Mas quem “enlameou” a própria operação foram seus atores, não foram agentes por fora. Muito me preocupa se amanhã viermos a descobrir que também tiveram interesses externos por trás dessas ações da “lava jato”.
ConJur — Que tipo de interesses?
Ali Mazloum — Interesses até mesmo econômicos. Veja essas ações em cima da Petrobras, aquela operação da “carne fraca”, quem se beneficiou com ela? Veja como várias multinacionais que se beneficiaram disso. Considero que isso seria a verdadeira traição à pátria, é uma coisa muito grave. O Judiciário tem que começar a olhar para essas coisas também. Sempre que acontece alguma coisa a gente questiona “quem se beneficiou” no crime. Olho essas operações e às vezes penso “que a gente ganhou com isso”?
ConJur — Como vê a atuação dos órgãos de controle e de fiscalização externa?
Ali Mazloum — Venho denunciando isso já há tempo: já peguei casos de investigação secreta, com uso de dados bancários obtidos ilegalmente e nunca se fez nada. Você encaminha para a corregedoria e até leva bronca às vezes. Dentro do Ministério Público existe uma delinquência intensa e não há denúncia, não há nada! O CNMP, por exemplo, não pune. Ao contrário, acaba sendo barreira para se apurar faltas do Ministério Público e isso é um problema.