LUCIANO ROLIM
O ESTADO DE S. PAULO
01 Julho 2015 | 03h 00
A concretização dos direitos sociais é, sem dúvida, um dos maiores desafios da atualidade. Pouco adianta eles estarem previstos na Constituição se o Estado não dispõe de recursos suficientes para assegurar educação, saúde, alimentação e moradia aos mais necessitados. Como consolo, os juristas desenvolveram o princípio da proibição de retrocesso social, segundo o qual o nível de consecução dos direitos sociais numa dada sociedade não admite recuo. Aliás, parece que a Justiça brasileira tem muito apreço por esse princípio.
Para entender melhor o que foi dito, partiremos de uma situação prática. Sabe-se que os governos de quase todos os Estados do Brasil mantêm um programa de auxílio-moradia ou aluguel social para famílias removidas de áreas de risco ou desabrigadas por motivo de calamidade pública. Em São Paulo, por exemplo, o valor do auxílio é de R$ 300 por família beneficiada. Pois bem, a proibição de retrocesso social é uma barreira contra eventual tentativa de abolição desse programa pelo governante de ocasião.
Contudo toda regra tem uma exceção. No caso, os manuais de Direito Constitucional fazem uma importante ressalva à proibição de retrocesso: ela está sujeita à “reserva do possível”. Por outras palavras, em ocasiões de grave crise econômica a carência de recursos públicos pode justificar a supressão de políticas de caráter social. Considerando a situação preocupante da economia brasileira, caberia perguntar se existe algum risco de os desabrigados de enchentes e outras calamidades ficarem sem auxílio-moradia.
Se depender do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Napoleão Maia, não há o menor motivo para preocupação. Em liminar proferida na Reclamação n.º 21.763, o ministro invocou expressamente o princípio da proibição de retrocesso em defesa do auxílio-moradia. Curiosamente, o auxílio-moradia em discussão naquele processo não é o benefício social dos desafortunados, mas a verba que vem sendo paga, desde meados do ano passado, para custear a habitação de todos os juízes brasileiros, incluindo os que possuem imóvel próprio em sua comarca de atuação. Os autores da reclamação insurgem-se contra a regra que determina o pagamento de um só auxílio-moradia a casais de magistrados que residem sob o mesmo teto. Eles sustentam que, nesse caso, cada consorte faz jus à vantagem integral, atualmente fixada em R$ 4.377,33. A liminar do ministro Maia reconhece tal direito.
Trata-se, no entanto, de uma decisão provisória, como toda liminar. É da mesma natureza a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux que, em agosto de 2014, impôs o pagamento do auxílio-moradia aos juízes. Na esteira dessa decisão, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estendeu o benefício aos membros do Ministério Público.
Segundo reportagem da revista Época, o pagamento da verba a todos os juízes e promotores do País acarretará uma despesa anual de R$ 1,53 bilhão. Não é só. As associações de juízes e de membros do Ministério Público já pleitearam o reconhecimento de um alegado crédito de auxílio-moradia retroativo a um período de cinco anos. Por falta de caixa, o pagamento será diluído ao longo de vários meses, tudo com juros e correção monetária, naturalmente. Em alguns Estados isso já vem sendo feito.
Quando a ação a cargo do ministro Fux for submetida ao plenário do STF, a Corte deverá debruçar-se sobre a seguinte questão: o auxílio-moradia universal dos juízes é compatível com o artigo 39, parágrafo 4.º, da Constituição federal? Tal norma estabelece que os magistrados e os membros do Ministério Público “serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”.
O tão aguardado julgamento da Suprema Corte servirá de paradigma para o exame da constitucionalidade de leis que asseguram aos juízes e promotores diversas outras vantagens semelhantes.
Por exemplo, no Rio de Janeiro eles já recebem, além do auxílio-moradia, auxílio-educação – no valor mensal de R$ 953,98 por filho até 24 anos, observado o limite de três filhos – e também auxílio-locomoção, de R$ 1.100. Ambos os benefícios foram incluídos no anteprojeto do Estatuto da Magistratura, que ainda prevê auxílio-plano de saúde, reembolso de despesas médicas e odontológicas não cobertas pelo plano de saúde e auxílio-funeral, além de diversas outras vantagens.
A escalada de auxílios na Justiça brasileira já foi alvo até de crítica internacional. Ouvido pela jornalista brasileira Cláudia Wallin, o juiz da Suprema Corte da Suécia Göran Lambertz tachou de “egocêntrica e egoísta” a atitude dos magistrados de buscar benefícios como auxílio-escola para seus filhos.
Cada país tem o Judiciário que merece, assim como cada Judiciário merece o país que tem. Nas palavras do magistrado sueco, “se o sistema judiciário de um país não for capaz de obter o respeito dos cidadãos, toda a sociedade estará ameaçada. Haverá mais crimes, haverá cada vez mais ganância na sociedade, e cada vez menos confiança nas instituições do país. Juízes têm o dever, portanto, de preservar um alto padrão moral e agir como bons exemplos para a sociedade, e não agir em nome de seus próprios interesses”.
A propósito, o país de Lambertz figura entre os que apresentam maior índice de desenvolvimento humano (IDH). Já o Brasil aparece apenas na 79.ª posição desse ranking, logo atrás do Azerbaijão, da Jordânia e da Sérvia.
No entanto, como visto acima, o Judiciário brasileiro tem dado provas de que lutará com todas as suas forças contra o retrocesso social. Resta saber se ele compreende adequadamente o significado dessa expressão.
*Luciano Rolim é procurador da República