Arquivo diários:28/09/2019

A desigualdade no Brasil é medida pelos dentes

Rosana Pinheiro-Machado

Foto: Image Source/Folhapress

MARIA DA LUZ teve sua primeira escova de dentes aos 15 anos. Antes disso, usava folhas para limpar os dentes, como era de praxe em Mulungu do Morro, interior da Bahia, onde nasceu. Aos 14, sentiu uma dor forte no dente da frente e seu avô a levou ao farmacêutico, ordenando que extraísse todos os dentes da frente de uma vez só — sem anestesia — para que não voltasse a incomodar. Aos 17 anos, depois de muito trabalhar na roça, ela conseguiu juntar dinheiro para comprar uma dentadura, com a qual nunca se adaptou.

Maria migrou para São Paulo com os três filhos, priorizando dar o melhor de saúde e educação para eles com as suadas economias do salário de auxiliar de serviços gerais. Ela nunca tirava foto. Dizia que era infeliz com sorriso e que seu sonho era fazer um tratamento dentário. Em 2015, conseguiu fazer implantes com a poupança de muitos anos. Hoje, não coloca mais a mão na boca para sorrir.

A história de Maria, contada a mim por sua filha Maya, é um pouco da história de dezenas de milhões de brasileiros que têm suas vidas atravessadas por dores de dente e falta de autoestima — quadro que só muda quando as famílias experimentam alguma mobilidade social.

Mas o desfecho positivo do caso de Maria, hoje com 47 anos, é incomum. Os problemas relacionados à saúde bucal tornam miserável o cotidiano de pessoas pobres. A dor física latejante e constante se soma à dor moral – o sentimento de vergonha, a humilhação e o trauma por não conseguir sorrir.

Apesar da onipresença desse sofrimento do cotidiano brasileiro, surpreende o quão invisível é o apartheid bucal que divide o país.

Este texto começou há dez anos, quando vi um estudante rico debochar de um porteiro que se queixava de dor de dente. “Que coisa mais jurássica! Isso ainda existe?”, ele disse. Naqueles dias, eu e a antropóloga Lucia Scalco começávamos nossa pesquisa etnográfica sobre consumo e política na periferia do Morro da Cruz, Porto Alegre. Recém havíamos conhecido Juremir, hoje com 52 anos, que não teve dinheiro para pagar um dentista, e a solução encontrada foi colocar álcool na boca para lidar com a dor até o nervo necrosar.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúdede 2013, quatro a cada dez brasileiros perdem todos os dentes depois dos 60 anos. O país que tem mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas. Na terra em que ricos pagam o preço de um apartamento para colocarem facetas reluzentes, milhões de pessoas ainda praticam métodos da Idade Média para lidar com a dor. Como afirmam os pesquisadores Thiago Moreira, Marilyn Nations e Maria do Socorro Alves, nesse mundo de abismos, a questão dentária é chave para compreender a desigualdade social e a pobreza no Brasil.

O país que tem mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas.

A pobreza é constituída multidimensionalmente por meio de uma combinação de renda e acesso à educação e à saúde. A condição dental precária é exemplar da pobreza porque é resultado de uma falência de uma série de eixos, como a condição financeira, o local de residência e o acesso à informação e à odontologia.

Se a saúde bucal é um fato social por excelência, não é raro escutar profissionais da saúde culparem as vítimas por sua situação. Durante a apuração que fiz para a elaboração deste texto, ouvi coisas como “pobre é acomodado”, “eles têm valores errados, preferem pagar por um tênis a ir ao dentista”, “hoje em dia qualquer pessoa consegue escova de dente de graça em uma universidade”. Individualizar a responsabilidade é uma falácia conveniente.

É difícil pensar a longo prazo quem tem que viver com o imediatismo da sobrevivência. Muitos sujeitos quando conseguem dinheiro precisam comprar comida. Outras vezes, optam por se dar a um pequeno luxo.

Em nossa pesquisa, coletamos infindáveis casos de pessoas que disseram que, em meio a uma existência precária marcada pela dor e sofrimento, permitir-se um pequeno ato hedonista significava uma espécie de “último desejo”– um prazer que será lembrado na memória para sempre. Podia ser um estrogonofe com batata palha, um book fotográfico ou um tênis de marca. Curiosamente todos esses auto-presentinhos foram comprados por pessoas que, aos 40 anos, já não tinham mais nenhum dente na boca.

Muitas crianças crescem em ambientes onde é comum o compartilhamento de escova de dentes. “Meu sonho é ter uma só para mim e não ter que dividir com meus sete irmãos”, escreveu uma menina em uma cartinha ao Programa Papai Noel dos Correios.

Adolescentes pobres saem da infância acumulando histórias dramáticas, que os prejudicam na socialização. Wellington, oito anos, morador do Morro da Cruz, tinha oito cáries em dentes de leite. “Podre” foi como a a dentista definiu a boca do menino. Ele não comia e não tinha mais alegria de viver. Ainda que existam serviços baratos e até gratuitos oferecidos por universidades e ONGs, famílias como de Wellington não sabem sequer como encontrar esses serviços. Minha colega Lúcia fez a mediação e agora ele está recebendo tratamento.

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Beto, 17 anos, não tinha amigos e sofria bullying dos próprios irmãos por causa dos dentes. Hoje com o sorriso reabilitado, Beto tem uma nova vida social. Antes e depois de Beto encontrar a equipe do SAS Brasil.Fotos: Reprodução/SAS Brasil

William Estevesom, 34 anos, trabalha como técnico bucal do bairro mais pobre do município de Alvorada, um dos mais violentos e estigmatizados da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ele relata que, nas segundas-feiras de manhã, os pacientes chegam no posto para pegar ficha no SUS depois de um final de semana de tormenta em que já tentaram de tudo para passar a dor, como passar perfume e creolina nos dentes.

As técnicas para lidar com a dor que eu e Lúcia ouvimos nos últimos anos são muitas. Álcool, sal, cravo, pomada de procedência duvidosa e até “sangria”: furar o própria gengiva com uma faca para sangrar e deixar a infecção vazar. Também é comum que as pessoas extraiam seus próprios dentes, pois pensam que, em última instância, é isso que muitos postos de saúde irão fazer. Na comunidade de Dendê, em Fortaleza, os recursos são rezar pelo dente para Santa Apolônia, além de cachaça, óleo de coco e líquido de bateria para diminuir a dor. Muitas dessas técnicas trazem riscos graves à saúde. São fruto do desespero. Como disse Juremir: “não é dor, é uma tormenta, uma angústia”.

Com a ajuda pessoal de Lúcia, Juremir conseguiu colocar uma prótese nos dentes. Voltou a sorrir depois de muitos anos e não parava de postar fotos no Facebook. Mas após cinco anos, o dente que segurava a prótese infeccionou, sua cara inchou e ele recorreu a quase todos os caminhos acima.

Essas experiências vividas vão deixando marcas que deterioram a identidade do sujeito. O processo pode ser encarado como parte da vida: a “sofrência do pobre”. Para muitos, o sofrimento bucal atravessa a vida toda. É uma “sina, um karma de outra vida”, como disse uma interlocutora. Isso porque, mesmo depois de colocar prótese, a alegria pode durar pouco. Sem acompanhamento, muitos não se adaptam e voltam a ser desdentados. “Essa desgraça fica solta, caindo, me machuca gengiva. Só coloco para tirar selfie,” brincou Rosi, 56 anos, também do Morro da Cruz.

Ter os dentes da frente é um requisito estético exigido pela maioria dos empregadores.

Colocar a mão na boca para sorrir é uma cena cotidiana que revela a vergonha sentida por quem tem uma falha na dentição. Por outro lado, percebemos o orgulho que as pessoas têm de mostrar os dentes saudáveis que restam: “esse e esse são bons”.

O técnico do SUS William Estevesom também narrou que, há poucos dias, uma senhora chegou no posto implorando para colocar um dente na frente, alegando que precisava trabalhar já que o inverno estava chegando. Ter os dentes da frente é um requisito estético exigido pela maioria dos empregadores.

Uma amiga, quando soube que eu ia escrever esta coluna, pediu-me para contar a história de sua mãe. Rosana, uma psicóloga que teve uma trajetória de sucesso e ascensão social no norte do país, passou a vida se escondendo das filhas para escovar os dentes. Minha amiga só descobriu que a mãe usava prótese quando tinha 12 anos. Demorou muito tempo para que a mãe se sentisse à vontade para comprar Corega na frente dela. Quando ela faleceu, as filhas tiveram o cuidado de colocar a prótese para velar seu corpo: “ela não gostaria de ser vista de outra forma”.

As filhas de Rosana passaram a vida cuidando excessivamente dos dentes – algo que escutei de muitas pessoas cujas famílias ascendem socialmente. O trauma da dor e a vergonha social de não poder sorrir é uma ferida que deixa marcas familiares profundas. Portanto, o cuidado com a saúde bucal passa a ser uma questão de dignidade, uma herança que essas mães, como Maria e Rosana, deixam para seus filhos.

A estética e a saúde dos dentes dizem muito sobre mobilidade social. Uma das primeiras medidas que muitas pessoas tomam quando conseguem um emprego é colocar aparelho nos dentes. Quando eu a Lúcia pesquisávamos os jovens que davam “rolezinhos” nos shoppings, percebíamos que eles sonhavam em usar aparelho: era uma marca de distinção tal como um tênis da Nike. Eles nos contaram que aparelhos dentários falsos eram vendidos na comunidade para eles irem “bonitos ao baile funk”. Nunca encontramos esses tais aparelhos falsificados, mas a existência dessa história já diz muito sobre as aspirações e desejo de status social da juventude das periferias.

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Anna Borges Louzada, 51 anos, trabalha em um centro de especialidades odontológicas (CEO) em Manaus. Defensora do SUS e preocupada com o governo atual, ela se dedica ao tratamento de pessoas com necessidades especiais.

Foto: Reprodução/Instagram

Apesar do cenário dramático, não são poucas as conquistas individuais e coletivas dos últimos anos. Houve uma significativa expansão das universidades do Brasil — que oferecem serviços a preço muito baixo à comunidade — e a proliferação de clínicas populares que foram impulsionadas pela inclusão financeira da Era Lula. A criação do Programa Brasil Sorridente, que chega a 90% dos municípios brasileiros, já atingiu 100 milhões de pessoas pelo atendimento básico do SUS. Há também, por todos os lados, profissionais que fazem trabalhos na ponta do sistema, superando a falta de recursos de norte a sul do país, em comunidades ribeirinhas ou em favelas.

Se as conquistas sociais aconteceram a duras penas, o cenário de cortes públicos do atual governo alerta para uma situação de calamidade. Quem começou a sorrir nos últimos anos pode voltar a se esconder.

Mastigar, gargalhar e ter uma vida sem dor são direitos humanos fundamentais. Sorrir é o gesto que expressa a felicidade. Por isso, a inclusão bucal, associada a um projeto de transformação social, deve ser uma pauta prioritária em qualquer projeto de reconstrução do campo progressista.

*Os nomes dos personagens deste texto foram omitidos para preservar sua identidade.

Fátima Bezerra divulgou calendário de pagamento dos servidores para o resto do ano

O Gabinete Civil do Governo do Estado anunciou nesta sexta-feira o calendário de pagamento dos servidores do Estado para os próximos 3 meses: outubro, novembro e dezembro.

No dia 15 de outubro recebe wuem ganha até R$ 3 mil (valor bruto) e 30% do salário dos servidores que ganham acima desse valor, entre ativos, inativos e pensionistas, além do pagamento integral do salário à categoria da Segurança Pública.

No dia 31 de outubro recebem o salário integral os servidores das pastas com recursos próprios e da Educação, além dos 70% restantes de quem ganha acima de R$ 3 mil, concluindo a folha do mês.

Em novembro e dezembro o Governo aumenta a faixa de pagamento para a primeira quinzena.

Assim serão pagos no dia 15 dos respectivos meses os servidores com salários até R$ 4 mil e 30% do salário dos servidores que ganham acima desse valor, entre ativos, inativos e pensionistas, além do pagamento integral do salário à categoria da Segurança Pública.

No final do mês, tanto de novembro quanto dezembro, recebem o salário integral os servidores das pastas com recursos próprios, assim como serão pagos os 70% restantes de quem ganha acima de R$ 4 mil, concluindo a folha.

Gilmar Mendes pede para STF retirar porte de arma e impedir entrada de Janot na Corte

Por Mariana Oliveira, TV Globo — Brasília

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes pediu nesta sexta-feira (27) a retirada do porte de armas do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot. O ministro pediu ainda que Janot seja impedido de entrar no tribunal.

Os pedidos foram feitos em razão da entrevista na qual o ex-procurador-geral revelou a intenção de matar Gilmar Mendes.

Em entrevistas aos jornais “O Estado de S. Paulo” e “Folha de S.Paulo” e à revista “Veja” publicadas nesta quinta (26), Janot revelou que, em 2017, quando estava à frente da Procuradoria Geral da República (PGR), entrou armado no Supremo com a intenção de matar Gilmar Mendes e se suicidar em seguida.

O fato está narrado no livro de memórias de Janot, mas sem o nome do ministro.

O pedido de Gilmar Mendes foi feito ao ministro Alexandre de Moraes em inquérito que apura ofensas aos ministros da Corte. O documento é sigiloso porque a investigação corre em segredo. Não há previsão de prazo para decisão por parte de Moraes.

Após deixar o cargo de procurador-geral, em setembro de 2017, Janot voltou a ser subprocurador-geral da República – o topo da carreira do Ministério Público Federal. Há cerca de 60 subprocuradores em atuação na PGR, que atuam em processos nos tribunais superiores.

Em abril deste ano, Janot se aposentou do cargo e passou a advogar. Atualmente, tem escritório e atua na área de compliance.

Todos os integrantes do Ministério Público Federal têm direito a porte de armas. De acordo com a lei orgânica do Ministério Público, o procurador aposentado mantém as prerrogativas do procurador em atividade. Logo, mesmo aposentado, Janot mantém o direito ao porte de arma.

Bandeira tarifária de outubro será amarela, diz Aneel

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou na tarde de hoje (28) que a bandeira tarifária de outubro será amarela. Dessa forma, a tarifa sofre acréscimo de R$ 1,50 a cada 100 quilowatt-hora (kWh) consumidos. A medida representa uma redução em relação aos meses de agosto e setembro, quando a agência adotou a bandeira tarifária vermelha, no patamar 1, com acréscimo de R$ 4 para cada 100 kWh consumidos.

Segundo a agência, a mudança da bandeira vermelha para amarela ocorre pela previsão do aumento das chuvas em outubro. “A previsão hidrológica para o mês sinaliza elevação das vazões afluentes aos principais reservatórios, o que também permitirá reduzir a oferta de energia suprida pelo parque termelétrico”, disse a Aneel, em nota.

Em livro, Janot cita choro de políticos e ‘farmacinha’ de bebidas na PGR; leia resumo

Em 2017, Rodrigo Janot teria entrado com uma pistola no STF (Supremo Tribunal Federal) para matar o ministro Gilmar Mendes. Foi o que o ex-procurador-geral da República afirmou à Folha e a outros veículos nesta quinta-feira (26).

A razão do plano de assassinato seria insinuações que Gilmar teria feito sobre sua filha em 2017. Nesta sexta-feira (27), o ministro do STF se pronunciou em carta recomendando tratamento psiquiátrico a Janot, além de colocar sob dúvida a sua atuação como procurador.

A cena é descrita no livro de memórias de Janot, “Nada Menos que Tudo”, lançado neste mês, embora o nome de Gilmar não seja mencionado na obra.

O APELO DE TEMER POR CUNHA

O livro começa com o relato de um encontro de Janot com o então vice-presidente Michel Temer (MDB) e o deputado Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) no Palácio do Jaburu, em que teriam pedido que o PGR arquivasse investigação sobre o deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ).

“Eu chamei o senhor aqui porque quero conversar não com o procurador-geral da República, mas com um brasileiro preocupado com o Brasil, com um patriota”, disse Temer, segundo Janot.

“Cunha é um louco, pode reagir de forma imprevisível e colocar o Brasil em risco. Confiamos no senhor como brasileiro e como patriota para manter a estabilidade do país”, disse Alves.

Nesse momento, segundo Janot, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou para participar da reunião e testemunhou a conversa. Alves sugeriu que ele arquivasse a investigação sobre Cunha.

O ex-procurador diz que questionou Temer sobre a “gravidade” do que Alves propôs. “Ele está propondo ao patriota Rodrigo Janot”, disse Temer, segundo o relato de Janot. “Esse homem [Cunha] é muito perigoso, e a gente não sabe quais as consequências que poderão vir dele. Então apelamos para que o senhor não leve a cabo essa investigação, que a arquive”.

“O que os senhores estão me propondo aqui é que eu cometa um crime de prevaricação. Isso eu não farei jamais”, disse Janot. “E muito me estranha que o vice-presidente da República e o ex-presidente da Câmara dos Deputados venham fazer uma proposta indecorosa dessas ao procurador-geral da República. Estou chocado com a ousadia de vocês.”

“Os senhores são responsáveis por esse homem estar assumindo a Câmara. Os irresponsáveis são vocês. Vocês é que são os não patriotas. Como é que vocês fizeram uma merda dessas?”, acrescentou. Segundo seu relato, a conversa durou 20 minutos e terminou aí.

LAVA JATO, DELAÇÕES E FESTA

Janot diz que achou fraco o conteúdo das delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, no início da Lava Jato. “Tivemos uma grande decepção”, diz. “Isso tá uma merda, não tem nada, tá raso esse negócio!”, disse aos procuradores de sua equipe antes de mandar refazer os depoimentos.

Relata diálogo que Vladimir Aras tivera com “Souza”, provavelmente o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. “Segundo ele, Souza disse que a intenção da força-tarefa era ‘horizontalizar para chegar logo lá na frente’, e não ‘verticalizar’ as investigações, e que, por isso, teríamos dificuldade em fundamentar os pedidos de inquérito. […] Não entendi direito esse conceito”, diz Janot.

Menciona a ida de Sergio Moro para o governo Bolsonaro e acrescenta: “Horizontalizar implicaria uma investigação com foco num determinado resultado? Eu não quis imaginar isso lá atrás e também não quero me esticar nesse assunto agora, mas isso ainda me incomoda um bocado, sobretudo quando penso em dois episódios separados no tempo, mas muito parecidos”. Cita os vazamentos do depoimento de Youssef sobre Lula e Dilma em 2014 e da delação de Palocci em 2018.

As declarações de Youssef “eram destituídas de qualquer valor jurídico. Youssef não compartilhava da intimidade do Palácio do Planalto e não tinha provas do que dizia”. Janot desconfia de “atuação com viés político”.

Após examinar delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, decidiu que os próximos acordos que envolvessem pessoas com foro seriam conduzidos por seu gabinete. E resolveu tomar novos depoimentos dos dois colaboradores.

O ministro do STF Teori Zavascki autorizou 21 inquéritos contra 50 políticos. “Não era a bomba atômica que se imaginava. […] Mas abriu uma avenida para a Lava Jato avançar.”

Janot também justifica o arquivamento dos casos de Dilma e Aécio: “Se o delator diz apenas que ‘ouviu dizer’, que não foi testemunha do suposto crime e não tem como indicar provas, o caso deve ser arquivado”.

Avisou os parlamentares que seriam investigados, mandando o assessor entregar a petição num envelope, pessoalmente. No caso de Cunha, “como ele estava em guerra comigo, achei por bem repassar o aviso pelo vice-presidente Michel Temer, com quem o deputado mantinha estreitas relações”. Também avisou o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Em 4 de março de 2015, desceu para ver manifestantes na porta da PGR, cerca de 30 pessoas. “[…] achava, de fato, importante receber apoio popular. Eu sabia que a reação do mundo político seria forte e, portanto, nenhuma ajuda poderia ser desprezada”.

Recebeu Rogério Chequer, do Vem Pra Rua, nessa época. Chequer sugeriu alvos para investigações e deixou com ele um kit do movimento.

Após a divulgação da lista de investigados, comemorou com a equipe. “Tiramos um dia de folga e esvaziamos algumas garrafas de vinho”.

ENCONTROS COM DILMA

Encontrou Dilma duas vezes. Na primeira, em 2013, disse que deveria ser “duro, muito duro com malfeitos”.

Na segunda conversa, para recondução, em 8 de agosto de 2015, não falou sobre a Lava Jato. Cardozo estava presente. “Nunca mais voltamos a falar.”

O APELO DE AÉCIO

Youssef citou Aécio Neves em depoimento ao grupo de trabalho da PGR no dia 12 de fevereiro de 2015. “O depoimento do doleiro era crível”, diz Janot, sobre propina da construtora Bauruense para obter contratos de Furnas. O problema é que testemunhas estavam mortas e não havia meios de comprovação.

Janot recebeu Aécio quatro vezes em seu gabinete. Ele falava da mãe, das filhas e da vida pregressa sem máculas. Chorava. Escreveu uma carta de três páginas para fazer apelo. “My life in your hands”, dizia o texto do tucano.

Eram “protestos sentimentais” desnecessários, e Janot arquivou o caso. “Se fôssemos abrir investigação contra todo político acusado por terceiros, sem provas, teríamos que investigar todos os ocupantes de cargos eletivos no país. A ideia pode não ser tão ruim, mas com certeza é inviável.”

Mais tarde, na época da delação da JBS, Aécio ofereceu cargos. Nove inquéritos foram abertos pelo STF a pedido de Janot para investigar Aécio Neves.

O CHORO É LIVRE

O deputado Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) também procurou Janot. Depois, quando recebeu o envelope com petição para arquivamento do seu caso, baixou a cabeça e começou a chorar. Mandou garrafa de cachaça com carta de agradecimento.

Paulo Roberto Costa disse que Alves fez gestões em favor de uma termelétrica e visitou Jorge Zelada. Sem dar maiores detalhes no livro, arquivou.

O senador Valdir Raupp (MDB-RO) “chorou copiosamente” ao saber que seu caso seria arquivado também.

A ex-senadora e hoje deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR) foi pedir clemência para seu então marido, Paulo Bernardo, que estava preso, e começou a chorar. Janot também chorou, lembrando do irmão Rogério Janot, morto, que foi usado por Collor para atacá-lo.

“A ideia é investigar todo e qualquer político contra o qual existam indícios mínimos de práticas de crime. Os requisitos para abertura de uma investigação estão previstos em lei. Eu não posso sair por aí abrindo inquérito só porque parece evidente que determinado personagem cometeu um crime.”

“E tem mais: se um desavisado qualquer resolvesse fazer algum tipo de insinuação, seria simplesmente preso em flagrante. O temor da mordida é de quem entra na toca do leão, não do leão.”

‘FARMACINHA’

Nos momentos mais tensos à frente da PGR, Janot conta que interrompia o trabalho e convocava a equipe para a “farmacinha”, como chamava uma geladeira que mantinha ao lado do gabinete abastecida com vinho, cerveja, uísque, cachaça, rum, vodca, gim etc.

“Na hora do aperto, quando a turma estava arrancando os cabelos, a farmacinha cumpria uma função terapêutica”, escreve.

Segundo Janot, ele engordou quase 30 quilos, fez dois cursos de tiro e passou a andar armado, com uma pistola .40 na cintura.

MORO E VAZAMENTOS

Encontrou Sergio Moro pela primeira vez no enterro do ministro do STF Teori Zavascki, em Porto Alegre. “Foi um encontro protocolar. Trocamos cumprimentos e seguimos adiante, cada um para um lado, sem entabular uma conversa mais longa.”

Janot diz que Teori se preocupava com vazamentos. “Em alguns casos, para segurança da própria investigação, algumas informações eram divulgadas. Mas algo entre 80% e 90% dos vazamentos tinha como origem bancas de advocacia interessadas em botar as delações na rua para criar na opinião pública uma posição favorável à homologação dos acordos.”

Elogia Teori por ter recuado no início da Lava Jato, tendo a “humildade de rever a própria decisão”, e cutuca Moro.

“Tempos depois, alguns disseram que ele teria ficado magoado com Sergio Moro. O juiz não o teria informado devidamente das condições dos presos e saíra do episódio como o magistrado da primeira instância que colocara um ministro do Supremo contra a parede. Se o ministro cultivou essa mágoa, nunca deixou transparecer.”

DENÚNCIA CONTRA LULA

Em setembro de 2016, os procuradores Deltan Dallagnol, Januário Paludo, Roberson Pozzobon, Antonio Carlos Welter e Júlio Noronha foram a Brasília para se reunir com Janot e “cobrar uma inversão da minha pauta de trabalho”.

Queriam que ele denunciasse Lula imediatamente por organização criminosa. Ele queria começar pelo PP, depois o PMDB e por último o PT. “Precisamos que você inverta a ordem das denúncias e coloque a do PT primeiro”, disse Deltan, segundo Janot, que disse que não faria isso.

Januário Paludo explicou que a denúncia apresentada pela força-tarefa de Curitiba contra Lula no caso do tríplex “ficaria descoberta”, sem crime antecedente para o de lavagem de dinheiro.

“Se você não fizer a denúncia, a gente perde a lavagem”, disse Deltan. “Você está querendo interferir no nosso trabalho”, exclamou o procurador, “aparentemente irritado”. “[…] vocês é que querem interferir no meu”, respondeu Janot. “Mas, se não for assim, nós vamos perder a denúncia”, disse Januário.

A CONVERSA DE JOESLEY E TEMER

Janot manifesta espanto ao receber a gravação da conversa do empresário Joesley Batista, dono da JBS, com o então presidente Temer, como se não soubesse das negociações.

Descreve Joesley como “bilionário de fala caipira” e diz que ele “fala como se estivesse lendo Guimarães Rosa de trás para a frente”.

Pediu para ouvir tudo quando lhe disseram que os empresários queriam imunidade. “Então traga todo o material. Quero ouvir tudo”.

“Moçada, não temos que pensar muito. Isso aqui é crime em curso. Temos que interromper esses crimes agora. Se não interrompermos, se não fizermos acordo, esse material é inservível, não posso usar. Como é que eu vou interromper essa merda sem acordo? Eu vou ter que fazer acordo, sim. E vamos dar imunidade”.

Falou com o ministro do Supremo Edson Fachin, fez “curto relato” sobre os diálogos com Temer e Aécio e a narrativa dos donos da JBS.

“Deixei os áudios com ele e fui embora. Um ou dois dias depois, retornei ao seu gabinete.” Explicou então que negociavam delação e precisavam de autorização para ação controlada.

Fernanda Tórtima pediu para ele receber os irmãos Batista no gabinete. Queriam posar para fotos.

Estavam “apreensivos quanto ao desfecho do acordo”. Queriam saber se Fachin ia homologar. Janot disse que não receberia ninguém. “[…] se eu tivesse acolhido aquele pedido, eles poderiam ter me gravado para, num outro momento, ostentar uma intimidade comigo que não tinham. As fotos não deixariam dúvidas sobre a suposta amizade”.

Procurado pelo jornal O Globo, soube do vazamento e negociou acordo com João Roberto Marinho, para que segurasse a informação em troca de aviso prévio de meia hora quando a operação fosse deflagrada.

Quem passou a informação para o Globo? “Gente ligada aos delatores […] para pressionar pela homologação”, diz Janot.

CRÍTICAS À FOLHA

Ao discutir a delação da JBS, Janot critica reportagens da Folha que lançaram dúvidas sobre a gravação da conversa que o empresário Joesley Batista teve com o presidente Michel Temer em março de 2017: “Esperei longamente uma revisão do caso pela Folha, o que não aconteceu até minha aposentadoria”.

PLANO DE MATAR GILMAR MENDES

Descreve “amargura” provocada por nota de revista semanal que apontava a filha Letícia como alvo de denúncias.

“[…] era como se estivessem arrancando meu fígado sem anestesia. Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.”

VICE DE AÉCIO

Janot diz que, em 2017, o então senador Aécio Neves (PSDB-MG) o convidou para ser ministro da Justiça em um eventual futuro governo. Aécio o procurara para saber se era alvo da delação da Odebrecht e se seria investigado.

O tucano depois teria sugerido a Janot que ele poderia ser o vice da sua chapa presidencial.

Após deixar a Procuradoria-Geral da República, em 2017, Janot se separou da esposa. Aposentou-se em abril deste ano, depois de 34 anos de atividade no Ministério Público.

NADA MENOS QUE TUDO: BASTIDORES DA OPERAÇÃO QUE COLOCOU O SISTEMA POLÍTICO EM XEQUE

  • Preço R$ 55,90 (256 págs.)
  • Autor Rodrigo Janot, Jailton de Carvalho, Guilherme Evelin
  • Editora Planeta do Brasil

 

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