Por Beatriz Olivon | De Brasília
Doadores têm conseguido, na Justiça, reaver bens após atos de ingratidão praticados por pessoas que foram beneficiadas – como herdeiros e ex-cônjuges. E não apenas com base nas situações listadas pelo Código Civil, de 2002. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em caso de uma idosa de 68 anos, levou em consideração o descaso e a indiferença da família.
A possibilidade de revogação de doação por ingratidão está prevista no artigo 555. E em artigo posterior, o 557, a norma lista quatro motivos para a medida: atentado contra a vida do doador, homicídio doloso, ofensa física, injúria ou calúnia e também por recusa de fornecer alimentos necessários.
No caso da idosa, porém, a 3ª Turma considerou que o conceito jurídico de ingratidão é aberto – ou seja, podem ser reconhecidas outras situações além das descritas pelo Código Civil. E, por unanimidade, aceitou como ato de ingratidão o tratamento inadequado dado à doadora (REsp 1593857).
A idosa, depois de doar seu único imóvel ao irmão, com reserva de usufruto vitalício (que permite o uso do bem pelo doador), passou a sofrer maus tratos. A família dele foi morar com ela e passou a agredi-la verbalmente. Chegou a ouvir que a família não queria conviver com ela. Por causa da situação, mantinha-se confinada em seu quarto e teve que comprar um frigobar para manter seus alimentos.
A jurisprudência do STJ permite a revogação por ingratidão. Mas exige que os atos praticados sejam graves e tenham claramente essa característica. “Atos tidos, no sentido pessoal comum da parte, como caracterizadores de ingratidão, não se revelam aptos a qualificar-se juridicamente como tais”, afirma o relator de outro caso na 3ª Turma (REsp 1350464), ministro Sidnei Beneti.
Em outro julgamento, realizado no ano passado, a 4ª Turma concedeu, por unanimidade, o pedido de um ex-marido para revogar doações feitas à ex-mulher por atos de ingratidão (REsp 1205728). O ex-marido doou imóveis e dinheiro à ex-esposa. Posteriormente, ela fez disparos com arma de fogo em frente à casa dele. A ação transitou em julgado em fevereiro.
O assunto deve voltar à pauta da 3ª Turma em breve. Será julgado processo envolvendo cotas empresariais doadas aos filhos de um empresário do ramo de transporte marítimo (REsp 1715499). O empresário teve sete filhos, sendo seis no primeiro casamento e um no segundo. Ele doou um grupo de cotas para um dos filhos e outro para os do primeiro casamento.
A ação discute a doação ao segundo grupo. Um dos filhos expediu um ato formal de notificação, indicando desconfiança com os atos do pai e até desonestidade. Ao receber a notificação, o pai ajuizou ação para revogar a doação, o que foi acatado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).
Além do STJ, segundo o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), tribunais estaduais tem aberto um pouco as hipóteses. “O entendimento mais abrangente é tendência em todos os tribunais do país. A dinâmica da vida é muito maior que os limites estritos da lei”, diz.
Apesar de a previsão existir desde o Código Civil de 1916, apenas com o texto de 2002 passou-se a discutir se as hipóteses para revogação poderiam ser ampliadas. Advogados divergem sobre a questão.
Para o advogado Alessandro Fonseca, sócio do escritório Mattos Filho Advogados, “a hipótese [para a revogação] tem que estar prevista em lei”. E acrescenta: “É importante apresentar provas das alegações.”
Em São Paulo, o Tribunal de Justiça (TJ-SP) negou, em abril, o pedido de um pai por falta de provas sobre injúria e negativa de alimentos (processo n º 0040515-23.2013.8.26.0002). No caso, ele e a ex-mulher haviam doado um imóvel aos três filhos, em 1989, com reserva de usufruto.
O imóvel é usado pela ex-mulher e pela família de um dos filhos. No processo, o pai alega que eles se negam a pagar aluguel compatível com o valor de mercado do bem e chamaram a polícia para retirá-lo do local.
O instituto é antigo, mas ainda é pouco conhecido, segundo a advogada Glaucia Coelho, sócia do escritório Machado Meyer. No contencioso há mais de 20 anos, a advogada só deparou-se com o primeiro caso há dois meses. “Mesmo para quem atua no direito de família não é tão comum”.
Ela considera que o instituto é baseado em conceitos jurídicos indeterminados. “São cláusulas abertas. Cabe ao juiz decidir o que é uma ofensa física, por exemplo”, afirma. Como os casos costumam envolver a análise de fatos e provas, acrescenta, há processos que não chegam ao STJ ou não têm o mérito julgado pelos ministros.