‘Se burlarem direitos sociais, vamos agir’, diz procurador-geral do Trabalho ao jornal Folha de São Paulo

BRASILIA, DF, 10.05.2017, BRASIL Audiência pública conjunta das comissões de Assuntos Sociais (CAS) e Assuntos Econômicos (CAE) para discutir a Reforma Trabalhista, com o comparecimento do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Em seguida, debate sobre o contrato de trabalho na proposta de Reforma Trabalhista, com a participaCAO de representantes da Anamatra e da OIT. Em pronunciamento, procurador geral do trabalho, Ronaldo Curado Fleury. Foto: Geraldo Magela / Agência Senado ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***LAÍS ALEGRETTI
DE BRASÍLIA

Com a entrada em vigor da nova lei trabalhista, o MPT (Ministério Público do Trabalho) vai monitorar a legislação que pode ser utilizada para prejudicar trabalhadores, segundo o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.

“Se a lei estiver sendo usada como forma de burlar os direitos sociais, vamos aplicar os direitos sociais, que estão previstos na Constituição e nas normas internacionais.”

Fleury disse que vale a pena para as empresas descumprir a legislaçãotrabalhista no Brasil e, por isso, argumenta que a reforma não reduzirá a quantidade de processos.

Crítico ferrenho da reforma, disse ter certeza de que a nova lei terá como efeito uma grande demissão e “formas alternativas”, de trabalho, como o contrato intermitente.

Folha – Como o MPT, que se posicionou contra a reforma, pretende agir após a nova lei entrar em vigor?

Ronaldo Fleury – No processo legislativo, fornecemos elementos técnicos para o Congresso, mostrando inconstitucionalidades, violações a normas internacionais, e não fomos considerados. Aprovada a reforma, nosso papel constitucional é defender os direitos sociais. Não se trata de combater a reforma ou de não aplicá-la. É uma lei: óbvio que tem que ser aplicada, só que, como qualquer lei nova, tem que ser interpretada.

Como isso será feito?

Nosso trabalho será justamente buscar, em cada caso, onde a legislação está sendo utilizada para prejudicar os trabalhadores, para precarizar, para levar a indignidade ao trabalho e atuar nesses casos. Se a lei estiver sendo usada como forma de burlar os direitos sociais, vamos aplicar os direitos sociais, que estão previstos na Constituição e nas normas internacionais.

Quais pontos da nova lei precisam ser interpretados?

Vários. Por exemplo, reforma acaba com a Justiça gratuita. A inconstitucionalidade nessa parte é tão flagrante que procuramos o procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, e ele ajuizou ação direta de inconstitucionalidade. Está lá no Supremo.

Outra coisa: pelo texto, posso contratar minha empregada doméstica como microempresária. A hora em que eu fizer isso, ela perde 100% dos direitos trabalhistas. Aí vem a pergunta: no caso do empregado doméstico, que tem uma legislação específica, é aplicável a reforma? Está aí um exemplo clássico em que quem vai dizer é o Judiciário.

Quais serão os efeitos imediatos da nova lei?

Haverá uma demanda muito grande para contratação por jornada intermitente. Não tenho dúvida de que haverá demissão grande de trabalhadores e a contratação por formas alternativas –microempresa, contrato intermitente.

Defensores da reforma argumentam que Justiça do Trabalho tem muita demanda. Qual será o efeito da nova lei?

Disseram que a reforma diminuiria o número de ações e criaria segurança jurídica. O fato de estarmos discutindo praticamente há um ano posições tão díspares mostra que não há. Ao contrário. Medidas muito graves foram adotadas e precisarão de muito tempo para maturar a interpretação.

Com relação ao número de processos muito grande, não vai diminuir nada. O número de ações trabalhistas no Brasil só existe porque vale a pena, para as empresas, descumprir a legislação trabalhista aqui. É uma coisa meio grave de falar, né? Vale.

A reforma não muda isso?

Quem tem a intenção de não cumprir a legislação continuará tendo. O Brasil tem hoje um terço das vagas que deveria ter de auditores fiscais do trabalho. Qual é a chance de eu ou você abrirmos uma empresa e sermos fiscalizados? Quase zero. Não há efetivo para isso.

O que precisa ser feito, então?

O governo tem que fiscalizar e punir com rigor. Na França, se a fiscalização chegar a uma empresa e ela não tiver pagando salário dos trabalhadores, vai fechá-la. Em outros países, o empregador é preso. No Brasil, o que acontece na remota hipótese de a fiscalização chegar? Ele vai tomar uma multa muito baixa e terá um prazo para pagar.

O argumento é que ficou mais fácil contratar e demitir.

A empresa terá, de qualquer jeito, obrigações. Quem hoje não contrata e admite trabalhar numa ilegalidade está predisposto a ficar na ilegalidade. O contador vai dizer: contrate para não ter problema. Esse empresário prefere atuar na ilegalidade. Ele sabe que o risco é baixo. O que a reforma vai fazer é criar uma massa salarial baixíssima.

Os defensores dizem que será mais gente com emprego.

Serão salários muitos baixos e, com isso, você acaba com o consumo interno. As empresas, por exemplo, de eletrodomésticos, carros”¦ Como os trabalhadores podem fazer um empréstimo de 12 ou 24 parcelas se não sabem se estarão empregados e, caso estejam, quanto eles vão ganhar no fim do mês? É um ciclo vicioso em que a Espanha entrou, o México entrou e nós vamos entrar também.

O argumento é o de que o trabalho intermitente já existe na prática, mas não tinha lei.

O trabalho intermitente era proibido e hoje é permitido, então foi institucionalizada uma fraude. Não houve proteção de trabalhadores. Isso não proteger ninguém, a não ser o mau empregador, que já estava fraudando. Com relação ao terceirizado, foi quem tomou o maior tombo na reforma. Antes, ele tinha um pouco de garantia. Agora, fala que pode haver negociação coletiva garantindo os mesmo direitos. Sabe quando vai haver negociação coletiva? Nunca.

Qual é a influência do contexto de crise econômica?

A Constituição já permite negociação coletiva para diminuir direitos. Crise econômica se resolve com medidas pontuais, não com medidas permanentes. A Constituição já permite que até o salário seja diminuído por negociação coletiva.