Por Tiago Angelo
Concebida para proteger mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, assim como para punir agressores, a interpretação da lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) passou por uma série de mudanças desde 2006, ano em que entrou em vigorar.
De lá para cá, em especial nos últimos anos, diversas teses em torno da normativa foram fixadas, o crime de descumprimento de medidas protetiva foi tipificado e os mecanismos de proteção à mulher foram ampliados.
A lei não se limita à violência praticada por maridos contra cônjuges. Decisões já admitiram, por exemplo, a incidência da lei em casos de agressão de mãe contra filha, padrasto contra enteada, neto contra avó, neto da patroa contra a empregada, entre outros. As partes não precisam dividir o teto e o agressor não deve necessariamente ser homem. A vítima, contudo, precisa ser mulher, cisgênero ou transsexual.
Tais previsões constam no artigo 5º da lei, que conceitua como violência doméstica e familiar qualquer ação ou omissão baseada em gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, além de dano moral ou patrimonial. A aplicação se dá independentemente de qual a relação íntima de afeto entre as partes e da coabitação entre vítima e agressor (artigo 5º, III).
Inserções
A maior parte das mudanças feitas na lei ocorreram nos últimos três anos. Em 2017, por exemplo, foi publicada a Lei 13.505/17, que acrescentou novos dispositivos. A norma estabeleceu que mulheres em situação de violência doméstica e familiar devem ser atendidas, preferencialmente, por policiais e peritas do sexo feminino.
A medida também garante o direito de que a mulher em situação de violência, assim como seus familiares, não tenham contato com testemunhas, investigados ou suspeitos de cometerem o crime.
No ano seguinte, em 2018, a normativa passou por uma nova alteração. Dessa vez, com a Lei 13.772/18, a violação da intimidade da mulher foi reconhecida como violência doméstica e familiar. O registro não autorizado de cenas de nudez ou de ato sexual também foi criminalizado.
Já em 2019, duas normativas estabeleceram mudanças na lei Maria da Penha. Uma delas, a Lei 13.827/19, autorizou que, em alguns casos, a autoridade judicial ou policial aplique medidas protetivas de urgência. Outra alteração veio com a Lei 13.926/19, que tornou obrigatório que seja informado quando a vítima for pessoa com deficiência.
STJ
O Superior Tribunal de Justiça foi o principal responsável por balizar no decorrer dos anos a aplicação da lei Maria da Penha. No entanto, decisões conflitantes foram proferidas.
Em 2013, ao julgar o HC 181.246, a 6ª Turma da Corte entendeu que, para a incidência da lei Maria da Penha, faz-se necessária a demonstração da convivência íntima, bem como de uma situação de vulnerabilidade da mulher, que justifique a incidência da norma de caráter protetivo.
No julgamento, o ministro Sebastião Reis, relator do caso, teceu comentários a respeito das diferentes interpretações sobre a lei. “Por um lado, há os que defendem que, pela interpretação literal da norma, a lei compreende relações de casamento, união estável, família monoparental, homoafetiva, adotiva e vínculos de parentesco em sentido amplo. Por outro lado, há aqueles que dão uma interpretação mais restritiva”, afirmou na ocasião.
Mais recentemente, em 2020, Reis decidiu que a lei se aplica a crime cometido contra empregada doméstica. No caso concreto, o réu foi acusado de atentado violento ao pudor. O homem é neto da patroa da vítima e não vivia na casa da avó.
Para Reis, o fato do réu não viver na residência da vítima não afasta a aplicabilidade da Lei Maria da Penha. “O que se exige é um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade pré-existente, gerada pelo convívio doméstico, sendo desnecessária coabitação ou convívio contínuo entre o agressor e a vítima, podendo o contato ocorrer de forma esporádica.”
Ampliação?
Segundo o promotor de Justiça André Luís Alves de Melo, que atua em Minas Gerais, a jurisprudência ampliou a aplicação da lei Maria da Penha no decorrer dos anos, o que teria gerado efeitos na administração da justiça.
“Foi criada uma sobrecarga nas varas que atuam no combate à violência doméstica, sem aumentar a estrutura delas. Enquanto isso, as outras varas ficam com menor carga de serviço. A intenção de proteger a mulher é boa, mas com sobrecarga e penas diminutas na lei acabam aumentando as prescrições”, diz.
Ainda de acordo com ele, houve colapso quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que vias de fato (ameaça à integridade física, sem lesão corporal) são de competência das varas de violência doméstica e não dos juizados especiais.
“Agora, quase 70% dos processos prescrevem nas varas de violência doméstica. Uma vara de violência doméstica tem recebido, em média, 30% a mais de processos que uma vara criminal comum, como se furtos fossem mais importantes e complexos do que a violência doméstica”.
O criminalista Eliakin Tatsuo, do Teixeira Zanin Martins Advogados, diz não achar que a aplicação da lei foi ampliada. “Acredito que essa sensação de ampliação é do jaez protetivo da norma, como decorrência da orientação prevista no artigo 4º para que sejam observados os fins sociais e as condições peculiares das mulheres em situações de violência doméstica”.
Para ele, de fato pode ser problemático concentrar muitos casos nas varas de violência doméstica e isso pode causar prescrições. No entanto, “nada obstante os problemas, sobretudo os estruturais, com que se depara a aplicação efetiva da norma, vejo como positivo o entendimento sistemático que vem sendo aplicado, porquanto maximiza o feixe protetivo visado pelo legislador — e isso ganha ainda mais amplitude e proporção em um país tão marcado, infelizmente, por crimes pautados pelo gênero”.
A promotora Fabíola Sucasas também diz não ver grandes ampliações na incidência da norma. “A jurisprudência tem apenas confirmado os ditames da lei Maria da Penha, cuja aplicabilidade tem sido alvo de constantes questionamentos. Se há muitos processos tramitando, em meio a uma violência reconhecidamente silenciada e subnotificada, é porque as mulheres estão confiando na Justiça e buscando esse caminho”, afirma.
Ainda segundo ela, “a prescrição, se ocorre, pode revelar uma falha do sistema e não pode ser atribuída a uma lei que é resultado de mais de 30 anos de clamor dos movimentos feministas e de uma recomendação feita pela Organização dos Estados Americanos ao Brasil”.